Totus Tuus - Tempos de totalitarismo
- Luiz Felipe Panelli
- 15 de mai. de 2019
- 7 min de leitura
O que é totalitarismo? Não podemos classificar o totalitarismo como um sistema de governo autoritário, tal e qual o que é hoje conhecido como ditadura ou o que antes era conhecido como tirania; se assim o fizéssemos, correríamos o risco de igualar conceitos que designam fenômenos diferentes - igualar coisas diferentes, portanto. O ato de conceitualizar serve, justamente, para criar definições rígidas, impedindo confusão intelectual. Há algo mais no totalitarismo, que supera o mero ato de governar de forma autoritária.
Deixemos de lado - por enquanto, apenas - os xingamentos toscos que permeiam o debate político atual, em que tudo que é dissonante é tido como “fascista” - seja lá o que isso signifique. Foquemo-nos na etimologia do termo “totalitarismo”, que, obviamente, advém de “total”. Este termo tem sua origem no latim “totus”, que ficou conhecida nos tempos modernos por compor o lema episcopal do Papa São João Paulo II, “Totus Tuus”. O lema significava “todo seu”, simbolizando a entrega absoluta de uma vida a Deus e à Igreja, aniquilando os desejos humanos e as singularidades do intelectual polonês Karol Józef Wojtyła - cuja vida fora marcada precocemente pela experiência com o totalitarismo nazista e comunista - e tornando-o instrumento divino, tão somente.
O “totus”, como termo latino, significa “tudo junto, o conjunto, o inteiro, o junto”. De um conjunto (uma reunião de coisas diferentes), o totus designa todos os objetos - ao receber o totus recebe-se tudo, e tudo junto. São João Paulo II deu à Igreja o “tudo dele”, ou o “tudo que era (d)ele” - a alma, o intelecto e o corpo que, extremamente frágil, teimava em ir a público. De São João Paulo II, a Igreja teve, portanto, tudo. Essa entrega reflete a entrega de Cristo na cruz: Deus que, sendo homem, dá à Humanidade tudo dele - inclusive ele mesmo, a própria vida. Daí dizer-se que o amor de Deus é infinito; e assim o é porque é total. Amor Vincit Omnia - O amor (de Deus) vence (o) tudo.

Deixemos Deus e voltemos à atividade mais humana que existe: a política. Se fazer política significa cuidar da polis e tomar as melhores decisões para a coletividade, o fazer(-se) político significa debater, conceder, ouvir, negociar, persuadir. A atividade política consiste em achar um denominador comum para grupos de interesses diferentes, formando, através de um processo legítimo, uma liderança legítima, que aja em nome de todos. Quando um grupo se impõe sobre o outro, estabelecendo uma relação de comando através da força, há o autoritarismo.
Há muitas formas de pensarmos o autoritarismo. Evidentemente, a ciência política e o direito têm modos de classificar uma ordem jurídico-política como autoritária ou democrática (e qualquer coisa nesse meio). Um dos modos é analisar a existência e efetividade de uma ordem constitucional que, de fato, consiga pôr freios ao poder. A democracia moderna-contemporânea constitucional é, politicamente, o regime em que há limites para o poder e limites nas relações humanas (ditados, justamente, pelo poder constitucional). Tola e ingênua (ou maliciosa?) é a ideia de que na democracia toda ação é válida, toda pretensão é justa, tudo é tolerável.
Pensemos, porém, em outra forma de conceber o autoritarismo, que é através da relação entre o emissor e o receptor da ordem. Tal relação é unilateral, ou seja, a reação adversa do receptor não pode culminar com um desgaste político para o emissor, mas apenas em punição para o receptor. Se X manda, Y obedece. Se Y desobedece, X pune Y. O descontentamento de Y não ameaça o poder político de X. Muito ao contrário, em uma relação política marcada pela horizontalidade, X manda e Y obedece; se Y desobedece, pode ser punido, mas Y terá a chance de valer-se do sistema para tomar o lugar de X.
Seguindo este esquema, o autoritarismo seria detestável porque nele os canais institucionais que levam ao poder estão bloqueados e são acessíveis somente a um grupo estabelecido. A identificação deste grupo pode se dar de modo informal, mas notório. No Brasil, todos sabiam quem eram os donos do poder na República Velha, a despeito do fato de a Constituição de 1891 ter feições razoavelmente democráticas. Para que haja o autoritarismo, a disputa pelo poder não precisa necessariamente ser farsesca; basta que esteja reduzida a grupos preestabelecidos.
Até aqui, tratamos de política. A questão abordada foi quem domina o poder político - quem tem a capacidade de dar ordem e quem deve seguir a ordem. Fica subentendido que a ordem diz respeito ao poder do Estado de fazer as suas funções típicas: arrecadar tributos, organizar a defesa, construir infraestrutura, escolher as prioridades de gastos, regular a atividade econômica, manter relações externas e, na maioria dos casos, dar unidade ao país, integrando o povo pelo território esparso.

O problema do totalitarismo começa quando o poder autoritário tem como objetivo não só o poder político, mas o poder sobre mentes, corpos, paixões e memória. Quando um poder dita o afeto alheio, abrem-se as portas do inferno. O totalitarismo não se contenta com pouco (o poder político) nem com muito (o poder político com garantia de perpetuidade); exige o totus. Ele nos quer inteiros; há que encarar o monstro que detém o poder e dizer “totus tuus” - eu sou teu, inteiro: corpo, mente, alma e afeto. Este, talvez, seja o trecho mais impactante do insuperável 1984, de Orwell: o personagem principal, completamente derrotado, quer morrer, mas a ele não é dado (ainda) tal direito. Sua vida não lhe pertence para que possa dela dispor. Antes, exige-se dele o amor ao Grande Irmão, o antagonista onipresente que tornou a existência em um inferno.
Note-se: não se exige submissão, ou aceitação; exige-se o amor. Suponho que não seja qualquer amor, mas o amor inconteste, que nada espera de volta, unilateral - o amor total, divino. Quando o protagonista de 1984 aceita amar o Grande Irmão, pode, enfim, morrer - a vida já não mais lhe pertencia, pois estava tomado na sua totalidade. Totus tuus. E, neste caso, o totus tuus significa a vitória final do Grande Irmão; não há chance de revolta quando o afeto está morto.

No ano de 2019, jazem George Orwell, Hannah Arendt e São João Paulo II. Mortos, os três gigantes do Século XX continuam a falar em alto som contra o moloch totalitário que, de tempos em tempos, surge exigindo um sacrifício muito maior do que o Deus judaico pediu a Abraão. Este, afinal, só pedia a vida do filho Isaac, enquanto o moloch quer as nossas consciências - ironicamente, é a mesma consciência que, em Abraão, submete-se voluntariamente ao desígnio divino e, por isso, obtém a liberação do sacrifício de Isaac.

A Polônia de São João Paulo II foi marcada por duas bestas: o nazismo e o socialismo. É de se admirar a resiliência do povo polonês, que conseguiu manter a alma viva em uma sucessão de dois infernos. São João Paulo II era, aliás, tipicamente polonês: sua resiliência, sua incansável peregrinação em ritmo próprio, olhando o longo prazo (como se tudo, para ele, fosse sub specie aeternitatis) e a insistência em um conjunto de valores imutáveis fixaram a sua imagem na história como o peregrino calmo e obstinado que pacientemente enfrenta as quimeras furiosas que surgem. Resistiu ao nazismo, resistiu ao socialismo, venceu as duas cabeças do Cérbero que tentava trucidar a Polônia. Resistiu e venceu porque tinha a consciência interna, que o protagonista de 1984 renunciou em prol de uma morte que o livrasse de sua agonia.
Diz a mitologia que o Cérbero, porém, tem três cabeças. A terceira cabeça do Cérbero que enfrentava São João Paulo II parecia mansa, mas era igualmente perigosa: a apatia de uma sociedade que não se importava mais com sua própria consciência, com seu valor histórico, com sua herança. Uma sociedade que o filósofo alemão Joseph Aloisius Ratzinger - sucessor de São João Paulo II no trono de Pedro com o nome de Bento XVI - denunciou como consumista, niilista e vazia. Apática, portanto. O que as cabeças raivosas do nazismo e do socialismo deste Cérbero totalitário não conseguiram - destruir a consciência dos povos - a terceira cabeça, mais mansa e afável, representada pela apatia, ameaça conseguir.

A apatia é totalitária? Entregar-se a uma vida de consumo e de satisfação pessoal imediata e fugaz, em que tudo é passageiro, em que não há raízes ou conexão com uma ordem histórica, é necessariamente ruim? E se for ruim, seria tão ruim quanto viver sob a égide do nazismo? Tão ruim quanto viver sob o jugo do socialismo? Os dois regimes foram “democidas”; seu modus operandi era, justamente, a morte de parte da população - e a outra parte era adestrada porque sabia que a ira do moloch poderia voltar-se contra ela a qualquer momento. Uma vida sem Deus, sem rei e sem lei, em que a paixão substitui o amor, seria tão ruim quanto o inferno nazista ou socialista?
A princípio, não. O problema é que a terceira cabeça do Cérbero não é realmente mansa. Ao afago canino segue-se a mordida. No caso, quem abocanha não o faz sem antes proclamar os bons propósitos de obter uma sociedade justa, igualitária e que permita a todos uma convivência harmoniosa. Em nome de tais ideais, regra-se a fala e o pensamento das pessoas. O censor não é mais membro do governo (se bem que no Brasil, às vezes, é…), mas uma horda de militantes de redes sociais (humanos ou robotizados) que constantemente patrulham o que cada um disse e como cada um se expressou. A pena não é mais corporal; reduz-se o autor do pensamento dissonante a um estado de ostracismo virtual. Uma vez posto o selo de vilão, o autor da dissonância pena em conseguir empregos, amigos e relacionamentos íntimos.
As regras do linchamento também são singulares. Mesmo se orientando de acordo com as normas rígidas do manual do politicamente correto (que mudam sem aviso prévio), ninguém está imune ao linchamento. Os arqueólogos do Twitter podem a qualquer momento escavar um tweet comprometedor. Há anos, você pode ter cometido a heresia de dizer que era contra a lei de cotas raciais em concurso público porque acredita que não cabe ao Estado classificar as pessoas de acordo com sua cor. Basta para que ocorra o linchamento.
Ao fim e ao cabo, a horda não quer realmente matar o herege, quer convertê-lo e depois matá-lo, à semelhança do Grande Irmão de 1984. A horda quer o totus tuus. Daí que o herege deve ficar o resto da vida implorando perdão e jurando não ser (mais) racista/machista/homofóbico/transfóbico/gordofóbico ou qualquer outro “fóbico” ou “ista” recém inventado
A escolha final, porém, é sempre do alvo do linchamento. Se não pode impedir o linchamento em si, pode escolher se amará o Grande Irmão ou se, como São Thomas More, irá para a fogueira de cabeça erguida.
São Thomas More é o santo padroeiro dos estadistas. Fica a dica.

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