top of page

Roberto Campos, o país da distorção e o Inimigo do Povo, de Henrik Ibsen

  • Foto do escritor: Luiz Felipe Panelli
    Luiz Felipe Panelli
  • 24 de jun. de 2022
  • 9 min de leitura

Li recentemente “A Constituição contra o Brasil”, que é uma coletânea de antigos textos de Roberto Campos, em que o saudoso economista critica violentamente a Assembleia Nacional Constituinte e a Constituição Federal que ela pariu.

Coletâneas de textos não são os livros mais agradáveis de ler; é comum que, ao longo de textos escritos com grande intervalo de tempo, o autor repita temas e idiossincrasias de estilo que, reunidas, ficam repetitivas. Cabe ao leitor entender que este é um vício inescapável de livros que reúnem textos curtos; é claro que um bom escritor não deixaria o texto fluir de forma tão truncada em um livro original.

Descontando a questão estilística própria das coletâneas de textos feitos para jornal, o livro é muito bom, apesar de (ou justamente por tal motivo) causar sério desconforto. Campos se coloca como inimigo da Assembleia Nacional Constituinte (ANC) e da nova Constituição. Segundo ele, não houve propriamente uma ruptura institucional apta a justificar uma reorganização constitucional; teria bastado ao Congresso Nacional a promulgação de algumas emendas à Constituição de 67-69 para restabelecer a normalidade democrática. No mais, a ANC seria um pretexto para radicais aprovarem suas teses esdrúxulas, porque, enquanto o processo de alteração da Constituição de 67-69 depende de maioria de dois terços, a aprovação de matérias na ANC está condicionada à maioria absoluta. E, claro, há toda a questão da retórica política, que fica exacerbada na ANC.

Antes de criticar o mérito das (quase sempre boas) ideias de Campos - e já tendo feito as ressalvas com relação ao estilo - quero fazer uma rápida digressão.

Sou, por formação, um constitucionalista. O título é pomposo, mas não quer dizer muita coisa: constitucionalista é um jurista que se dedica ao estudo do direito constitucional, que nada mais é do que o estudo da formação jurídica dos Estados e da limitação do poder (especialmente do poder político) e dos direitos fundamentais das pessoas. O direito constitucional é algo muito bonito de ser estudado, porque tem relação intrínseca e íntima com a filosofia política e com a ciência política. Uma boa noção de direito internacional e filosofia do direito ajuda muito quem quer que se candidate a estudar a matéria; ademais, um bom estudo de história do direito é quase imprescindível.

Nos vários anos em que passei estudando o direito constitucional, percebi que a Constituição de 1988 é vista pela comunidade acadêmica de forma quase que sagrada: ela representaria o apogeu da redemocratização e o fim da longa luta contra um perverso autoritarismo, além de ter sido uma vitória das forças progressistas contra o “atraso” e de ter colocado sob controle nacional as nossas “riquezas” (basicamente, minérios, gás e petróleo). Se o país não virou uma Shangri-La tropical após a sua promulgação, isto se deve às forças estrangeiras, que têm obsessão em perpetuar a nossa miséria, ao fato das forças políticas terem ignorado a tarefa de regulamentar a Constituição e, claro, às forças da “direita” capitalista, que insistem em entregar ao mercado (entidade metafísica demoníaca) os rumos do país.

Campos implode tal visão infantil lembrando o óbvio: país rico é país produtivo e país produtivo ordena suas riquezas de acordo com o mercado. O Estado é péssimo gerente e mau planejador e seu protagonismo econômico só torna o país mais pobre. Para Campos, a Constituição de 1988 nasceu velha, já que foi baseada nas Constituições ibéricas do fim da década de 70 e início da década de 80, que foram feitas segundo um paradigma de mundo da Guerra Fria que ruiu em 1989, logo após a promulgação da Constituição Federal de 1988. Ainda, o texto constitucional é farto em protecionismos e reservas que apenas alienam o país do concerto político e comercial do resto da humanidade, prolongando nosso atraso. A suposta retórica de direitos é apenas uma máscara dos interesses corporativistas que dominam nosso processo político.

É cruel, mas é certo? Até que ponto Campos acertou e até que ponto foi simplesmente ranzinza? Dissequemos com calma as ideias de Campos.



A Constituição, tão celebrada e tão detestada por Campos

Primeiro ponto: não se sustenta a ideia de que não houve ruptura institucional apta a dar azo a um novo processo constituinte. O Brasil entrou em um regime militar por causa de um golpe (se havia ou não uma ameaça socialista em 1964 é algo que não interessa à presente análise) e nele ficou por décadas. Podemos julgar os erros e acertos dos militares, mas não se pode negar o caráter autoritário do regime, bem como sua baixa adesão aos direitos humanos. Houve tortura e houve censura, e isto basta para tornar qualquer regime repugnante e ilegítimo.


Comissão Nacional da Verdade, apesar de ideologizada e parcial (só ouviu um lado da história) foi importantíssima para esclarecer episódios gravíssimos de tortura cometidos pelo Estado brasileiro. Quem é realmente liberal não pode deixar de se insurgir contra tal prática, ainda mais quando advém do Estado…


Sobre a redemocratização e a ausência de uma ruptura institucional, tenho que, se a redemocratização não se deu por meio de uma ruptura profunda, mas por meio de uma distensão negociada e gradual, isto é um mérito dos opositores do regime (a ala moderada, e não a socialista que formou uma guerrilha para tentar implementar uma ditadura de esquerda), que souberam manobrar politicamente em tempos difíceis. Havendo, porém, o consenso para a redemocratização, é natural que ela culminasse em uma nova ordem constitucional.

Isto não muda o fato, é claro, de que a nova Constituição ficou bem aquém do ideal. O texto tem inúmeros defeitos, sendo o mais fácil de ser notado o seu gigantismo. Curiosamente, quem quer que critique o gigantismo da Constituição em um ambiente acadêmico é imediatamente classificado de superficial e conservador. Outro defeito é o enorme corporativismo; diversos setores do funcionalismo público - quase todos, aliás - ganharam “prerrogativas” (leia-se: privilégios), altos salários, autonomia, etc.

Muitas das distorções citadas acima não se deram apenas durante a ANC, mas lá começaram e se aprofundaram no processo constituinte, que, curiosamente, não terminou com a promulgação da ANC. O Brasil nunca interrompeu o processo constituinte; a revisão constitucional e centenas de Emendas surgidas após a promulgação do texto constitucional muitas vezes aprofundaram as distorções corporativistas. Algumas destas Emendas, é claro, foram necessárias e boas, mas muitas outras têm as nítidas impressões digitais de aparatos sindicais e ideológicos.

Campos acerta, portanto, em criticar o texto constitucional. Apesar de repetir alguns clichês amplamente equivocados (como o fato dos EUA só ter tido uma Constituição e que ela teria só sete artigos, o que é duplamente errado, ou o fato da Inglaterra não ter Constituição escrita, o que também é errado), ele acerta no diagnóstico da nossa falha (populismo, corporativismo, estatismo) e no prognóstico (um país eternamente atrasado e sempre perdendo oportunidades). Foi profético e preciso.



Campos critica, com toda a razão, a ridícula lei da informática e o monopólio da Petrobrás, que acabou derrubado posteriormente


Lendo Campos, me lembrei da euforia com a promulgação da Constituição. Seria Campos um inimigo da Constituição, um inimigo da nova ordem democrática, um “inimigo do povo”, para usar a expressão de Henrik Ibsen, que deu título a uma de suas mais famosas peças de teatro? Como já faz muito tempo que li “O Inimigo do Povo”, voltei ao texto.

Na peça, uma pequena cidade vive um momento de euforia econômica por conta das suas águas termais, que atraem muitos turistas durante determinada estação do ano. Ocorre que o Dr. Stockmann descobre que as águas estão contaminadas e podem pôr em risco a saúde dos turistas. Consertar o encanamento é algo que custará caro e será demorado; ademais, quem iria à cidade para se banhar após saber que as águas eram pestilentas?

A ruína da cidade parece inevitável. Stockmann, porém, é surpreendido com a reação de autoridades e populares, que simplesmente insistem que ele não publique suas descobertas acerca da qualidade das águas. Como insiste em ser transparente e verdadeiro - e, afinal, ele tem provas de que aquele mal existe! - ele passa a ser hostilizado publicamente, tornando-se um inimigo do povo.

Associei a ranhetice de Campos com Stockmann. Seria Campos o único homem verdadeiramente ético que, sabendo que o enorme corporativismo da nova Constituição levaria o país à ruína, ousou estragar a festa de todos? Mas afinal, a festa da promulgação da nova Constituição não é semelhante ao baile do Titanic, em que pessoas dançavam alegremente sem perceber o perigo que corriam? E, afinal, o Titanic não naufraga? O Brasil também não naufraga economicamente nas décadas seguintes à promulgação da nova Constituição?


Para Campos, a festa da nova Constituição causou ao Brasil uma séria ressaca


***


O que fazer? Não creio que haja solução; os problemas brasileiros são tão profundos que não vejo a menor esperança de termos, em espaço de uma vida humana, um país desenvolvido. Arrisco dizer, porém, que o primeiro passo é resgatarmos a retórica constitucional das garras do corporativismo. Para isso, é necessário voltarmos ao básico, ou seja, a uma reafirmação do que é uma Constituição, do que são direitos fundamentais, do que é um Estado, do que é o mercado, etc.

O cenário brasileiro é um pesadelo, mas não é exatamente novidade. Se há um conceito que bem define o Brasil é a distorção. As ideias são filtradas pelos nossos ares tropicais e se tornam um eco muito distante do seu som original, quase perdendo o sentido. É tudo distorcido e há uma necessidade constante e desesperada de lutar pelo resgate de conceitos.

Diante do ocaso brasileiro, uma das tentações recorrentes é se render ao desânimo e proclamar a falência geral do país, enquanto se planeja um exílio. Nada contra um bom exílio, claro, mas sustento que há uma outra opção. Quem quer que se diga um liberal (como eu) deve dar um passo atrás na luta político-eleitoral e se voltar aos conceitos. Ao fazê-lo, estaremos contribuindo para resgatar a retórica do constitucionalismo das garras do corporativismo, que há muito a sequestrou. Resgatar conceitos significa dizer e explicar (é preciso paciência e insistência) que pode-se ter poupança sem ter um absurdo como o FGTS, que a meia-entrada é uma distorção na formação de preços do mercado que serve somente aos interesses corporativos das entidades estudantis, que criminosos devem ser punidos pelos crimes que cometem (punição rígida, mas legal, sempre aplicada através do devido processo legal, com suas garantias), que há uma enorme diferença entre direitos onerosos e não onerosos (Roberto Campos insiste muito nisso, com acerto), etc.

Como liberal, acredito que os conceitos estão ao nosso lado, assim como estavam no caso de Campos (e de Stockmann). É preciso ter coragem para vencer o desânimo e ganhar a batalha das ideias. Não é simples, é cansativo e, não devemos nos enganar, os adversários em geral não querem um debate sério e honesto. Não esperemos, então, um debate honesto. A arena das ideias é, justamente, uma arena, não uma cervejaria!


***

Em determinado momento, Campos ridiculariza a licença-paternidade. Creio que, quando da Constituinte, Campos já deveria ter filhos em idade bem adulta. Eu me lembro do quão importante foram os míseros cinco dias de licença-paternidade quando meu filho nasceu, há poucos anos. E creio que uma extensão para vinte dias é muito bem-vinda, assim como uma extensão da licença-maternidade para cento e oitenta dias seria ótimo. Sim, um liberal pode defender a expansão de direitos sociais dentro de um contexto de racionalidade. Direitos sociais em si (descontados os custos) são muito bons!


Campos era, em certa medida, a antítese de Ulysses Guimarães

***

Se fôssemos adultos o bastante para deixarmos de lado as inúmeras vaidades que permeiam o campo liberal-conservador, teríamos reunido as obras de Campos, Merquior e outros tantos em edições de grande acesso ao público e também teríamos criado condições dos novos teóricos liberais-conservadores conversarem de maneira produtiva. Não o fizemos. Ao contrário, privilegiamos as tretas de redes sociais. Nossa vida virou a cracolândia do Twitter. Deu no que deu. Viramos a multidão que, em Inimigo do Povo, apedreja a casa de Stockmann pelo fato dele ter cometido a imprudência de falar a verdade.

É preciso maturidade para voltarmos a conversar sem apontar o dedo para um inimigo.

***

Voltemos aos textos de Campos. Dá para perdoarmos as constantes reclamações e mesmo os erros do velho economista? Dá para perdoarmos eventuais passadas de pano para o regime militar, que foi uma ditadura e desrespeitou todo o tipo de direitos humanos?

Insisto que sim, se soubermos lê-lo com a maturidade necessária. Eu, se estivesse na ANC, provavelmente sofreria do mesmo mau humor crônico de Campos. No entanto, um bom leitor saberá retirar dos seus textos as diversas críticas muito válidas aos horrores do nosso processo constituinte e aplicá-las aos dias atuais.

Temos que reconhecer um mérito a Campos: apesar do justificado mau humor, ele não parece ter desanimado da tarefa de pensar e debater o Brasil. Sei que é difícil, mas cabe a nós - mesmo os que optam, de forma muito justificada, pelo exílio - continuar este debate sem o desânimo que o atual quadro, pra lá de deprimente, nos induz.

Campos não deixou de explorar incansavelmente os conceitos e contrapô-los às distorções, tampouco viu os membros do outro espectro político como inimigos (sim, a recíproca não era verdadeira, mas enfim…). Foi um homem de ideias e não permitiu que o desânimo o abatesse.

A coletânea “Constituição contra o Brasil” traz uma série de textos ácidos, mas sempre propositivos. É uma lição para todos nós, especialmente nos áridos tempos atuais.


 
 
 

Comentários


Não é mais possível comentar esta publicação. Contate o proprietário do site para mais informações.

Formulário de inscrição

Obrigado!

  • Facebook
bottom of page