"Liberalism and its Discontents", de Fukuyama - Uma breve e elogiosa análise
- Luiz Felipe Panelli
- 3 de nov. de 2022
- 9 min de leitura
No inferno cognitivo em que vivemos, em que os conceitos têm significados adaptáveis às necessidades de diferentes agentes do campo político, o termo “liberalismo” é especificamente ambíguo. Quando usado por militantes da chamada “nova direita”, pode significar uma forma de demonstrar aversão à burocracia estatal ou, em sua versão mais extrema - e tola - geralmente chamada de “libertarianismo”, uma aversão à própria existência do ente estatal. O mesmo termo, usado por militantes de esquerda, pode significar uma ode a um capitalismo desenfreado, em que a ausência de regulação estatal gera concentração de renda e exclusão social. No campo estritamente político, os defensores de um regime “liberal” geralmente defendem um Estado de Direito com limites ao exercício do poder, mas há detratores à esquerda que usam o termo de forma pejorativa, acusando os regimes “liberais” de, sob o manto da retórica dos direitos, promoverem uma contínua e crescente exclusão social e exploração dos mais pobres.
Esta última versão, é claro, deriva bastante dos (neo?) marxistas, que enxergam o mundo de acordo com o binômio superestrutura/base. O “liberalismo político” seria ruim porque mascara a luta de classes e impede a tão sonhada revolução (ou pelo menos a posterga, já que ela é inevitável).
No Brasil - país cuja principal característica é a imprecisão conceitual e a dificuldade de absorver os cânones da civilização ocidental, que frequentemente se mostram distorcidos - o termo era um xingamento. Na deprimente arena da realpolitik, quando um adversário queria acusar o outro de não ter “preocupação social” (pecado dos pecados…), logo o chama de “neoliberal”. O adversário rapidamente dava um jeito de repelir a acusação; assumir-se “liberal” ou, muito pior, “neoliberal”, era uma sentença de morte.
A caixa de Pandora tem, portanto, um rótulo: liberal. Melhor não abri-la, melhor não querer olhar o que está lá dentro, você pode acabar soltando inúmeras pragas que atormentarão a humanidade para sempre ou, no mínimo, vai soltar contra você mesmo um rótulo de malvadão do qual você nunca mais escapará.

E se deixarmos a adolescência política e cognitiva e ousarmos analisar um conceito com um mínimo de neutralidade (sim, meu amigo pós-moderno, é possível fazer análises minimamente neutras)? E se analisarmos o conceito antes de dizermos se ele é bom ou mau (se é que tais categorias se aplicam a um conceito)?
Um guia confiável nesta jornada é Francis Fukuyama, que é bem conhecido do grande público. Cientista político americano, tradicionalmente ligado à direita e ao partido republicano (mas rompido com o chamado “movimento neoconservador” no fim do governo de George W. Bush), Fukuyama ficou conhecido pela tese - excessivamente otimista e extraordinariamente errada - do “fim da história”, pela qual a queda do muro de Berlim e da URSS traria uma nova era de hegemonia das democracias liberais, em que o uso de força e a quebra institucional se tornasse improvável (quando não impossível) e em que haveria primazia do direito e das soluções consensuais.
Fukuyama errou feito, como pode atestar qualquer pessoa que leia a primeira página dos jornais de hoje. Vivemos em um mundo marcado por um cataclisma ambiental, pandemias (e disputa por vacinas), guerras, etc. De certo modo, o mundo é mais conflituoso do que durante a Guerra Fria.
Vale a pena termos como guia alguém que fez uma previsão tão errada? Respondo com um entusiasmado “sim”. Ao contrário de muitos, Fukuyama não errou por ser pedante ou por tentar fazer o mundo - sempre complexo - caber no seu molde ideológico. O erro foi fruto de uma experiência intelectual honesta. Esta é, aliás, uma das características da escrita de Fukuyama que aparece com muita clareza: ele tem uma curiosidade e prazer enormes na inquirição intelectual e muitas vezes mostra mais dúvidas do que certeza. Muito me agrada, frise-se.

Em Liberalism and its discontents, Fukuyama tenta definir o que é, afinal, o liberalismo político, explica a incompatibilidade desta doutrina com extremismos e teorias identitárias muito fortes, bem como fala da rejeição do liberalismo, seja pela esquerda (socialismo, políticas identitárias) seja pela direita (nacionalismo).
Lendo Liberalism, temos a impressão - correta, diga-se - de que o liberalismo político é uma doutrina morna. Ele não prega a solução de todos os problemas da humanidade, a erradicação de inimigos (quase sempre imaginários…), a fraternidade entre os homens, a superação das desavenças, etc. O que o liberalismo prega é o controle do poder político, por meio de instituições, a fim de evitar a sua concentração e permitir um pluralismo na sociedade e uma maior afirmação individual.
Não parece muito apaixonante em um primeiro momento. Não à toa que vemos muitos xófens andarem orgulhosos com camisas do Che Guevara ou dizerem em alto e bom som o nome do político pelo qual são apaixonados, mas vemos muito poucos defenderem uma política de moderação balizada por instituições estáveis.
O liberalismo político pressupõe o convívio pacífico com as divergências. É um regime de tolerância, assim entendida a tolerância como a habilidade de discordar dos demais de forma explícita, mas pacífica. Atualmente, o termo “tolerância” foi deturpado pela vertente identitária da New Left americana a fim de significar a aceitação forçada de ideias radicais, que são estranhas ao senso comum, e calar dissidentes. Prática antiliberal, claramente.
A beleza do liberalismo político está no fato de que as pessoas não têm que concordar a respeito de ideias ou valores, ou da forma de viver a vida. A divergência não só é aceitável como é, em certa medida, benéfica e esperada. Da divergência advém riqueza, não somente no sentido material - isto é uma bem-vinda consequência, diga-se - mas também no sentido moral e intelectual. Uma sociedade que permita o convívio pacífico de doutrinas divergentes vai desenvolver filtros para permitir que as boas ideias sobrevivam e sejam aperfeiçoadas, enquanto as más ideias são descartadas. Ocorre uma natural e benéfica evolução.
Temos então um regime em que todos podem viver como querem e pensar o que querem, desde que não venham a ferir o direito alheio. A paz é garantida pela lei, que é feita e aplicada por instituições estáveis. Fim da história (de novo)?
Not so fast. A liberdade individual, que é um pilar e um objetivo do liberalismo, se apresenta como uma armadilha. Se levada a extremos, pode resultar em uma doutrina antiliberal. Fukuyama cita como exemplo o famoso e infame “neoliberalismo”, que seria um movimento de extrema valorização da liberdade econômica, rejeitando a imposição de controles regulatórios por parte de autoridades estatais. Disto resulta concentração de renda e um direcionamento econômico avesso às aspirações da sociedade. Trata-se de perversão da doutrina liberal.
Outra perversão - e esta para mim é bem mais infantil e irritante - seria o tal do “libertarianismo” que, como afirmado anteriormente, é uma doutrina que entende que a própria existência do Estado já é bastante questionável e que o poder estatal deve ser reduzido a um mínimo possível, em especial na seara econômica. Há uma forte aversão a qualquer ato da burocracia estatal, mesmo que o ato seja proporcional e necessário à manutenção da ordem pública.
(Apesar da minha aversão ao libertarianismo, devo admitir que Nozick era um pensador sério. No vídeo, o jusfilósofo Ronald Dworkin explica o conflito entre as ideias do liberal Rawls e do libertário Nozick)
Fukuyama faz uma ligação entre o neoliberalismo e o libertarianismo. O neoliberalismo teria sua origem nos economistas de Chicago que acabaram por oferecer uma justificativa erudita às políticas de reforma (e diminuição) do Estado de bem-estar social que foram implementadas na Era Reagan. O Libertarianismo, por sua vez, seria uma versão mais popular, radical e menos erudita (como dito no começo, mais bobinha) do neoliberalismo.
Não há uma condenação inequívoca do que ele chama de “neoliberalismo” como imoral, pelo menos não a priori. Fukuyama admite que, a partir do fim do Século XIX, com grande intensificação a partir de 1930 (supostamente, ele se refere ao New Deal de Roosevelt), houve um enorme aumento do poder estatal no setor regulatório. A partir de 1970, percebe-se que o Estado regulador tornou-se um monstrengo que distorce a economia através de subsídios para empresas improdutivas. Começa a era das reformas e, no início, elas são benéficas (o preço da passagem aérea, por exemplo, cai bastante). O pêndulo volta ao meio.
No meio, porém, não fica muito. Logo começa a ir para o outro lado, por meio de uma excessiva desregulamentação. A saída abrupta do Estado de setores como telecomunicações permite o surgimento de novos - e questionáveis - empresários, alguns dos quais ficam rapidamente bilionários. Interpretando de forma equivocada a queda da URSS, os neoliberais acreditavam que uma saudável economia de mercado surgiria na antiga área socialista. O que surgiu foi um grupo de oligarcas, em geral ex-agentes do Estado que, de modo mafioso, passaram a controlar a economia local. Desnecessário dizer que rapidamente se tornaram bilionários.
No resto do mundo, problemas se acumulavam. O setor financeiro dos EUA protagonizou escândalos constantes - afinal, não havia quem os supervisionasse de forma eficiente - e houve uma perda de empregos na manufatura dos países desenvolvidos, o que, apesar de numericamente compensado com a geração de empregos em outras áreas e inflação baixa (itens mais baratos chegavam da China), deixou uma geração de desempregados permanentes e ressentidos. Eis o ovo da serpente do trumpismo, que emergiria anos depois.
O excesso de regulamentação do Estado de bem-estar social arriscava tornar o mundo um lugar apático e ineficiente, mas a inversão do pêndulo trouxe uma era de angústia e incerteza, mesmo com crescimento razoável.
Reagan resume o chamado "neoliberalismo"
Sobre crescimento, aliás, o velho e bom liberalismo político tradicional também impulsionava o desenvolvimento econômico, à medida que permitia que as pessoas e empresas transacionassem com quem quer que fosse. Se você é obrigado a apenas transacionar com pessoas do seu grupo (de sua religião, seu clã, sua família, seu grupo político,etc…) suas opções serão menores e você fará negócios menos rentáveis. Recursos serão desperdiçados e, no geral, a eficiência da economia diminuirá. O esquema liberal nunca foi, no entanto, avesso a um controle estatal necessário, como nos casos em que o Estado age para evitar a formação de cartel.
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A perversão da teoria liberal pelos que Fukuyama chama de neoliberais trouxe, segundo Liberalism, um outro aspecto indesejado, que foi a dissolução de laços comunais. Os indivíduos passaram a ter menor engajamento em atividades comunitárias ou mesmo propensão para fazer qualquer coisa da qual dependa o bem comum, como pagar impostos. A ideia de uma polis como uma comunidade com alguns valores em comuns - mesmo que seja o valor da tolerância com a diferença, tão típico do liberalismo - vai se esvaziando.
Nem só de radicalizações à direita morre a teoria liberal. Fukuyama aponta, tal e qual fazem alguns dos membros da nossa “nova direita”, que as críticas de Marcuse à sociedade capitalista, em especial a sua decepção com o papel da classe trabalhadora como revolucionários, colocaram em pauta uma crítica à própria noção de indivíduo e liberdade, que são tão caras ao liberalismo. Segundo os críticos, a liberdade é uma ilusão que serve aos interesses de grandes capitalistas e impede o surgimento de um movimento revolucionário. A teoria liberal passou a ter que lutar pela sua sobrevivência em um novo front, desta vez à esquerda.
As teorias de Marcuse, desenvolvidas ao longo do tempo, desembocam no horror identitário em que vivemos hoje. As qualidades e defeitos de cada pessoa deixam de importar e passamos a nos classificar com critérios como raça, cor, sexualidade, etc. Espera-se que, se você pertencer a um certo grupo, ecoe as ideias tribais sem muito espírito crítico. Questionar muito significa ser um traidor da sua raça, cor, sexualidade, condição social, etc.; ademais, o questionamento mostra uma propensão a ser “colonizado” por ideias opressoras. Você pode ser acusado de ser um opressor de alguma minoria e sua vida se tornará um inferno. Melhor ficar bem quietinho.
Uma nota final a este brevíssimo comentário sobre a obra de Fukuyama: um dos desafios atuais à ordem liberal vem também da crítica pós-modernista, que nega até mesmo a possibilidade de conhecimento (cognição) e a existência de fatos objetivos. Falando de forma ampla, o pós-modernismo e seus movimentos associados chegam a negar os métodos epistemológicos da ciência moderna, o que se torna um problema porque o liberalismo político tem uma tradição intelectual que é correlata à observação científica empírica. À medida que o pós-modernismo (lato sensu) nega a existência de um conhecimento objetivo (uma "objetividade epistêmica"), acaba por negar também as premissas liberais.
Marcuse sendo entrevistado pelo simpático Brian Magee. Lá pelos 17min até os 22min, falam do desenvolvimento capitalista por meio da sociedade de ações e lá pelos 11min e 50 seg, falam da questão do indivíduo.
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Devo dizer que o livro de Fukuyama dialoga muito bem com a obra do intelectual brasileiro Bolivar Lamounier intitulada “Liberais e antiliberais”, que, de maneira inovadora, entendeu que a disputa política atual não é entre esquerda e direita, mas entre os que abraçam e os que rejeitam a teoria do liberalismo. Por “antiliberais”, devemos entender doutrinas de teor fascista e marxitsta que, a despeito de acentuadas diferenças, têm como ponto comum rejeitar a doutrina liberal, em especial o individualismo metodológico. Infelizmente, tais doutrinas ainda têm larga penetração nos mais diversos círculos intelectuais.
Algumas más ideias custam a morrer.
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