Churchill, por Martin Gilbert: o drama de ler biografias
- Luiz Felipe Panelli
- 20 de dez. de 2021
- 7 min de leitura
A leitura de biografias é, creio, a mais difícil de todas as leituras. Em um primeiro momento, ler uma biografia pode parecer um exercício simples; o biógrafo apenas tentou recompor a vida de alguém com base em uma série de fontes, reunindo os pedaços para formar um testemunho coeso e minimamente fidedigno, bastando ao leitor assimilar tais informações já devidamente organizadas. Ocorre que as relações entre biógrafo, biografado e leitor têm um peso enorme na experiência de leitura. O leitor dificilmente se mostrará disposto a ler a biografia de um completo desconhecido, alguém de quem nada sabe. Para que o leitor se dedique à leitura de centenas de páginas sobre a vida de alguém, é preciso que o biografado já tenha formado nele alguma impressão, positiva ou negativa. Muitos leem as biografias de pessoas execráveis - grandes tiranos, por exemplo - para entender os seus mecanismos psicológicos; outros leem tais biografias como um estudo histórico.
Eu li a biografia de Churchill por admiração. Sofro de séria anglofilia e queria saber mais sobre o homem que liderou o Reino Unido nos momentos mais difíceis do Século XX. A minha aversão ao autoritarismo - em particular ao socialismo - me leva a uma admiração nata por líderes como Churchill. Particularmente, sinto uma necessidade de entender melhor figuras relevantes do contexto anglo-americano como Churchill, Roosevelt, Truman e Eisenhower. Todo o período do fim da Segunda Guerra até o começo da Guerra Fria - período que forjou, de muitas maneiras, a atual ordem mundial - é do meu interesse.
Eis que surge um problema: o prolífico historiador Martin Gilbert, biógrafo de Churchill, é também um entusiasta do velho primeiro-ministro. Não digo que o biógrafo não deva ser um entusiasta do biografado; é difícil conceber que alguém se dedique à árdua tarefa de reconstruir a vida de uma pessoa sem que haja alguma paixão envolvida. Ocorre que, em biografias, espera-se um mínimo de isenção, sob pena de caracterizarmos o biografado como um santo ou um diabo. O competente Gilbert, por exemplo, não hesita em pôr Churchill no rol dos heróis.

A enorme biografia escrita por Gilbert, publicada no Brasil em dois volumes, mostra Churchill como menino inteligente, mas nem tanto dedicado aos estudos. Jovem, Churchill tem uma afinidade com a língua inglesa e assuntos militares, além de uma bondade inata mascarada pela personalidade brigona e teimosa. Depois de muita insistência - a vida de Churchill é repleta de pequenos fracassos - consegue ir ao Exército, onde tem experiências marcantes, como a de ser um prisioneiro de guerra (que consegue fugir!), liderar a malsucedida campanha de Galípoli e conceber os primeiros e rudimentares tanques de guerra. Depois, como jornalista e correspondente de guerra, consegue notoriedade e sucesso, que lhe garantem uma entrada na política - entrada esta que também não foi imune a eventuais fracassos. Torna-se figura relevante até que é visto como paranoico e caricato por insistir na necessidade de conter os nazistas e de rearmar o Reino Unido. Quando vem a guerra, torna-se primeiro-ministro e lidera um país com enorme defasagem militar por longos e duros anos, nos quais a população fica submetida a bombardeios, derrotas, racionamento e toda espécie de más notícias, até que veio a sonhada vitória da qual Churchill nunca duvidou. Ironicamente, a vitória militar traz um período de inquietação política, que acaba por apeá-lo do cargo de primeiro-ministro, ao qual ele retornaria após alguns anos.
Gilbert ressalta o caráter e a inteligência de Churchill, aliados ao humor, ao otimismo (mesmo em momentos dificílimos, que convidam os homens à desesperança e à frustração) e à enorme capacidade de trabalho. Um estadista completo. O texto de Gilbert envolve muito facilmente os que, como eu, têm uma tendência a ver com simpatia líderes como Churchill, avessos ao socialismo e adeptos de uma ordem constitucional liberal-conservadora.
Resta a inevitável pergunta: e se o texto de Gilbert, apesar de seus inúmeros acertos, só estiver pregando aos convertidos? Gilbert é, evidentemente, um entusiasta da mesma ordem constitucional que Churchill tanto defendeu. É simples para pessoas como Gilbert - e eu - vermos em figuras como Churchill a encarnação de tudo que é certo. Imaginemos, porém, a leitura da biografia de uma figura dos Séculos XIX e XX que tenha marcado o “outro lado” da história - digamos, Lenin, sobre quem só li “Rumo à Estação Finlândia”, que não é uma biografia, apesar de ter dados biográficos interessantes. Vamos supor que esta biografia de Lenin, apesar de bem escrita e fidedigna, interprete os feitos do biografado como façanhas heróicas, insistindo que a Revolução Russa e a guerra civil, apesar das inúmeras vítimas, foram altamente positivas e que o regime instaurado por Lenin foi glorioso. Como eu reagiria à leitura?
Provavelmente, reagiria mal. Poderia até admitir os méritos do biógrafo e o êxito em reconstruir a vida do biografado, mas o criticaria por dar um viés positivo a pessoas e eventos que, na minha visão, foram amplamente negativos para o desenvolvimento da humanidade. Se, felizmente, sei que seria cético com relação à biografia de Lenin ou de outro dos heróis do panteão da esquerda, não deveria, por dever de honestidade, ser igualmente cético com uma figura como Churchill?
Se tivesse que ser cético, não escaparia de diversas perguntas. O fato de Churchill ter nascido razoavelmente rico em uma sociedade com pouca mobilidade social como a Inglaterra do Século XIX não foi determinante no seu sucesso? Afinal, ele não foi o responsável pelo fracasso em Galípoli? A influência dele na organização da nascente ONU e da atual ordem mundial não foi maléfica para os países do terceiro mundo? Em que medida Churchill não contribuiu para as mazelas de sua família (uma de suas filhas cometeu suicídio e o seu filho Randolph era um bêbado arrogante dado a explosões de ira) por conta de sua ausência e personalidade singular? Apesar de não duvidar das suas boas intenções, o modo dele lidar com questões como as que envolviam partes do decadente império britânico - em especial a Índia - não demonstram um desprezo pela autodeterminação dos povos?

Evidentemente, não quero ser anacronista e julgar Churchill com os parâmetros do Século XXI. A última das minhas intenções é ser como a turba de jovens enfurecidos do primeiro mundo que, sem ter do que reclamar, julgam de forma dura todos os líderes do passado de acordo com seus critérios neuróticos, dando a Churchill o título de “racista”. Churchill foi um homem do seu tempo e, como tal, foi um grande homem. Ousou, errou e, sobretudo, acertou. Tinha coragem e generosidade.
Deixemos Churchill de lado e foquemo-nos em Gilbert. Como biógrafo e historiador, Gilbert é excelente, mas acertou ao apresentar um Churchill tão heroico e afável? Notemos que é impossível responder sobre um suposto erro na caracterização de Churchill antes de definirmos qual é o grau aceitável de subjetividade nas biografias - e aqui, não quero cair na armadilha pós-moderna do “tudo é subjetivo”, que fez tanto estrago em estética e outras áreas -, mas é impossível não notar que Gilbert nunca conheceu Churchill. Conhecer uma pessoa não é, de forma alguma, requisito para biografá-lo, mas sem ter conhecimento direto de Churchill, Gilbert poderia ter captado algo que o desabonasse? Teria Gilbert ficado refém da narrativa histórica, que via Churchill como herói?
Inevitavelmente, quando escolhemos biografar alguém que muito admiramos, acabamos por demonstrar uma tendência à adulação.

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Uma breve digressão: sabemos que as discussões políticas dos últimos anos são feitas com base em argumentos quase puramente emocionais. Sugiro ao leitor o seguinte exercício: pegue um problema atual - seja a pandemia, a inflação, a recessão, etc. Veja o que o político que está no poder (presidente, prefeito, governador, ministro, etc…) fez para resolvê-lo e a efetividade da solução (o político A enfrenta o problema X, dá a solução Y, e colhe o resultado Z). Seja justo e considere as limitações político-econômicas. Agora, imagine que um outro político, de outro campo do espectro ideológico, estivesse no poder e, diante do mesmo problema, tivesse aplicado as mesmas soluções (o político B enfrenta o mesmo problema X, a mesma solução Y, chegando no mesmo resultado Z). Para facilitar, vamos supor que a solução (Z) tenha sido boa.
Os críticos do político A teriam sido tão duros com o político B caso ele estivesse no poder? E os que elogiaram o político A, teriam elogiado o político B caso fosse ele que tivesse feito a mesma política Y e colhido o mesmo resultado Z?
Você já sabe a resposta: não. Em política, evidências importam pouco; o que importa são as paixões partidárias, grupais e o senso de identificação com um coletivo. A política é intelectualmente miserável.
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A despeito de possíveis críticas, a biografia escrita por Gilbert é sensacional. Creio que o melhor, em biografias, não é cobrar uma imparcialidade completa e cética. Admitamos nossas preferências e tentemos nos comportar racionalmente a despeito delas. Gilbert era um entusiasta de Churchill. Eu também sou e, por isso, ler a biografia escrita por Gilbert foi um deleite. Se um historiador tão bom quanto Gilbert escrevesse a biografia de Lenin, de forma acurada e fidedigna, mas elogiosa (tal e qual Gilbert fez com Churchill), a leitura teria me irritado.
Até que ponto somos escravos das nossas preferências políticas, fadados a pregar para os convertidos, manipulados pelo algoritmo do Twitter e do Facebook a nunca sair dos nossos círculos? Me dá certo conforto saber que, na minha vida, já vivi giros ideológicos. Nunca fui socialista, felizmente, mas já me identifiquei com a “New Left” americana e seus ecos brasileiros; hoje me identifico com a direita antibolsonarista - em que pese meu irredutível ambientalismo, nem sempre bem aceito nos círculos da direita.
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Um dos maiores méritos de Gilbert é criar entre o leitor e Churchill uma aura de intimidade. Em alguns momentos, lemos o “Churchill de Gilbert” como se estivéssemos lendo sobre as aventuras e desventuras de um velho amigo, alguém que conhecemos, prezamos e por quem torcemos. Lendo a biografia escrita por Gilbert, me vi na condição de torcedor de Churchill quando da sua fuga como prisioneiro de guerra; igualmente, me enraiveci quando seus colegas deputados escarneceram dos seus repetidos pleitos pelo rearmamento e sorri com muita simpatia quando Churchill afirmou que um começo de vida turbulento não era uma condenação à mediocridade, bastando um esforço tenaz e contínuo para o sucesso. O “Churchill de Gilbert” é alguém a quem prezamos.
A nítida parcialidade de Gilbert talvez tenha sido desconfortável porque me fez perceber melhor a minha própria parcialidade. Sim, tenho lado, jamais teria por Lenin a mesma simpatia que tenho por Churchill. Não há problema em ter lado, em optar, em desagradar quem quer que seja. Talvez a natural simpatia por Churchill que pessoas como Gilbert e eu temos desagrade socialistas e boa parte dos que, de forma histérica e autoritária, clamam por revisões históricas, acusando tudo e todos de “racismo” e outros “ismos” por não compactuar com seus critérios neuróticos.
É bom desagradá-los.

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PS: na primeira versão deste texto, nomeei Churchill como “Winston” e Gilbert como “Martin”. É um bom sinal o fato de que a leitura me fez crer que havia entre nós - leitor, biógrafo e biografado - alguma intimidade?
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