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"Rumo à Estação Finlândia" e "Marxismo ocidental" - O implacável anjo da história

  • Foto do escritor: Luiz Felipe Panelli
    Luiz Felipe Panelli
  • 30 de out. de 2019
  • 7 min de leitura

Atualizado: 6 de jan. de 2020

É difícil escrever algo significativo a respeito de um livro como “Rumo à Estação Finlândia”, do crítico Edmund Wilson. O fato de ser um livro tão bom, tão bem escrito e tão lido e comentado torna qualquer novo comentário supérfluo. Lê-lo, porém, me evocou à memória dois historiadores, Tony Judt e Eric Hobsbawm, ambos falecidos recentemente. Judt e Hobsbawm tinham a capacidade de narrar um período da história de forma que o leitor se sentisse envolvido em uma narrativa cujo personagem principal é a própria história - e cujo destino nos importa tanto quanto o de um personagem de romance pelo qual nos afeiçoamos. Isso era feito, evidentemente, sem perder a profundidade e o rigor acadêmico - apesar de que o público para o qual Judt e Hobsbawm escreviam transcendia o círculo acadêmico.


Wilson não é historiador, mas consegue construir uma narrativa para um determinado personagem histórico, que é o socialismo, imprimindo certo ritmo à narrativa da mesma maneira que Judt fez em seu “Pós-guerra”, ou que Hobsbawm fez no seu “Eras…”. Esteticamente, o leitor sente que algo está se desenrolando com um determinado propósito, que vai muito além da exposição encadeada de fatos. Isso permite que “Rumo à Estação Finlândia” seja uma leitura prazerosa por si mesmo, independentemente do mérito historiográfico da obra.


Platitudes e bajulações de lado, vamos à obra.


Em "Estação", a história é o personagem principal. Ela tem seu rumo. Tudo conflui para que Lenin, arrastado pela história, desencadeie o processo revolucionário

Wilson divide Estação em três partes diferentes: a primeira seria referente a um “pré-socialismo”, a segunda a um socialismo embrionário e teórico (Marx e Engels entram nesta parte) e a terceira às questões que levaram à Revolução Russa de 1917.


O que classifiquei como “pré-socialismo” é uma inquietude moderna que acometeu os personagens históricos analisados por Wilson (com ênfase no historiador francês Jules Michelet, do Século XIX) no sentido de que a ruptura definitiva trazida pelo fim do Século XVIII e começo do Século XIX com as tradições medievais prenunciava uma nova era. Obviamente, a organização social-econômica do Século XVIII e XIX era infinitamente diferente de qualquer ordem medieval (estamos falando de um interregno de pelo menos trezentos conturbados anos), mas o fato é que um historiador como Michelet - a quem Wilson retrata quase carinhosamente - faz com que vejamos a história a partir de uma nova perspectiva: um “protomaterialismo”, na falta de um termo melhor, que põe a ação humana e suas escolhas como personagem principal da narrativa histórica.


Este “protomaterialismo” (de novo, desculpem pelo péssimo termo…) torna indesculpável a tensão social que emerge da primeira revolução industrial. Nesse ponto, Wilson faz um belo trabalho em humanizar o drama social sem cair em um sentimentalismo pueril. Que a implementação do modelo industrial trouxe um primeiro período de grande desigualdade social é algo sabido, mas Wilson faz com que o leitor atente a detalhes sórdidos que, na narrativa histórica, passam despercebidos. Exemplifico: jamais imaginei que os industriais tinham a prerrogativa jurídica de pagar os trabalhadores quando lhes aprouvesse. Da mesma forma, nunca imaginei Londres retratada em cores tão tristes como mostra Wilson, que evoca quase um romance de Dickens.


Uma Inglaterra pós-industrial, com pobreza e um ambiente insalubre. Um pesadelo que ajudou a parir a teoria socialista

“Estação” funciona, como dito, ora como um “quase romance”, ora como uma biografia. O personagem principal do romance e o biografado, porém, não são uma pessoa, tampouco a ideia de socialismo - entender que “Estação” pretende dissecar o socialismo enquanto ideia é, para mim, um erro. Este personagem-biografado é o próprio “Anjo da História” (para pegar emprestado a expressão do neomarxista Walter Benjamin), que, de forma profética, quase que cumprindo uma missão divina, leva a flâmula socialista à estação Finlândia, fazendo com que a revolução desembarque na Rússia com Lênin.


O socialismo tem, em “Estação”, quase que uma jornada mítica de herói, em que fatalmente todos os desafios e sacrifícios são superados para que se culmine no momento revolucionário final. Isto não significa, porém, que a obra é ufanista. Wilson expõe sérias falhas de caráter do principal nome do socialismo (Marx, obviamente), bem como indica incoerências graves na teoria socialista, sem, porém, se aprofundar na parte teórica, já que este não é o escopo do livro. Wilson também fala discretamente sobre os horrores do socialismo do Século XX - a saber, o totalitarismo, a fome, a paranoia política, a destruição do indivíduo, a negação dos direitos - mas, parece colocar tais fatores na conta de um regime que ainda virá, e do qual ele não trata. O seu desprezo por Stalin aparece, mas também de forma contida, já que fora do seu escopo.


O mérito de “Estação”, porém, é assumir a narrativa da inevitabilidade da revolução como produto de uma ideia cujo tempo tinha chegado e apresentar os seus personagens sem cair numa admiração infantil tão característica dos que tratam do tema. De novo, volto a Benjamin: o Anjo da História avança, passando por personagens que ficam pelo caminho.




(esta é a pintura que inspirou a análise de Benjamin sobre o progresso. A análise é, em si, muito interessante, apesar do quadro ser...aquém do esperado, digamos. Cito Benjamin “Existe um quadro de Klee intitulado “Angelus Novus”. Nele está representado um anjo, que parece estar a ponto de afastar-se de algo em que crava o seu olhar. Seus olhos estão arregalados, sua boca está aberta e suas asas estão estiradas. O anjo da história tem de parecer assim. Ele tem seu rosto voltado para o passado. Onde uma cadeia de eventos aparece diante de nós, ele enxerga uma única catástrofe, que sem cessar amontoa escombros sobre escombros e os arremessa a seus pés. Ele bem que gostaria de demorar-se, de despertar os mortos e juntar os destroços. Mas do paraíso sopra uma tempestade que se emaranhou em suas asas e é tão forte que o anjo não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, para o qual dá as costas, enquanto o amontoado de escombros diante dele cresce até o céu. O que nós chamamos de progresso é essa tempestade”)

O desfile de personagens inclui socialistas pré-marxistas um tanto quanto ingênuos, um Marx inteligente, mas imoral, Engels um tanto quanto abobalhado e submisso e um Lênin genial e precoce, mas frio, dentre tantos outros que, mortos e vivos, rumam à estação Finlândia, para iniciar um dos principais eventos do Século XX.

***


Uma breve explicação pessoal: sou e sempre fui (e creio que sempre serei) um “antimarxista” convicto. Não creio que tudo se reduza a uma luta econômica entre classes com interesses antagônicos, nem que a história tem um sentido definido - não acredito neste anjo, apesar de acreditar naqueles descritos por Aquino. Prefiro metafísica do que o materialismo e, definitivamente, não vejo os principais fenômenos culturais (o direito, a evolução tecnológica, a filosofia e a arte como um todo) como uma mera superestrutura que mascara uma tensão de classes. Não acredito em paraíso na Terra, mas acredito que este sofrido planeta já viveu um inferno, que é o totalitarismo - e boa parte deste inferno se deve, justamente, ao socialismo.


Rejeito, acima de tudo, a estética socialista. Subordinar arquitetura, pintura e música a um ideal político (ainda mais um que reputo perverso) é subordinar a beleza à política, coisa que não admito. Não sou relativista: há o bom e o mau, o feio e o belo, o justo e o injusto.

A teoria marxista, porém, me foi útil em diferentes estágios de uma caminhada intelectual. Ela permite compreender o básico da dinâmica trabalhista (mesmo que suas premissas econômicas estejam erradas) e dá uma compreensão da história (mesmo que seja uma leitura reducionista), bem como mostra o embasamento de críticos ardorosos do pensamento ocidental.



O fato é que o socialismo com que tive contato é da vertente frankfurtiana, ou seja, tem os pés na teoria crítica. Este socialismo é ocidentalizado e já nasce crítico do conceito de revolução da forma como ele é tradicionalmente descrito, apesar de não ter dado o grande passo e feito uma crítica ferrenha do totalitarismo, motivo pelo qual sempre o abominei.

Trata-se de um socialismo mais cínico, mais voltado a uma crítica de coisas que, tradicionalmente, são consideradas boas (beleza, moral, família, religião, direito, etc…). Esta vertente de socialismo se apropriou das ciências humanas como um parasita e, de forma irritante, dá um jeito de se imiscuir em todas as discussões, inclusive as relacionadas com temas que ela deveria estranhar (metafísica, estética, direito…).


O socialismo com que tive contato (e que sempre abominei) não vai à estação Finlândia; vai à universidade e, de forma persistente, faz girar em torno de si toda a discussão sobre temas relevantes. É um inferno, mas é um tipo de inferno diferente daquele vivido por quem esteve em uma situação de revolução no Século XX ou inserido em um esquema totalitário. Parece mais uma infecção, que deve ser mantida sob controle e à distância para que a mente possa respirar e a vida intelectual possa prosseguir.


***


José Guilherme Merquior escreveu “O marxismo ocidental” com o intuito de analisar justamente este corrente socialista de origem franco-alemã, baseada na teoria crítica. Merquior é implacável: há muito valor em pensadores como Gramsci ou Lukács, mas o fato é que a teoria marxista é, em si, falha. Os pensadores da escola de Frankfurt, porém, “forçaram a barra” - e Marcuse é pintado em cores muito negativas.


Merquior volta a sua atenção para Hegel, cujas lições serão vitais para a estruturação do marxismo. Acima de tudo, a dialética de Hegel - pela qual a história se faz através de tese, antítese e síntese, e que seria usado pela teoria socialista clássica como forma de demonstrar que o sistema atual estava fadado ao fracasso - é o núcleo da teoria.


Hegel é, para Merquior, o filósofo capaz de fazer uma síntese “cristão-burguesa” da sociedade e dar uma explicação racional da história - características das quais a teoria marxista clássica irá se apropriar de várias formas.


O Anjo da História (o fantasma de Benjamin virá furioso em meu encalço, não?) tem lá seus caprichos: na década de 30 do Século XX, o mundo foi tomado por dois movimentos totalitários, igualmente terríveis. Um deles iria macular a herança de Hegel. Diz Merquior, em um dos trechos mais interessantes do livro:


“Schmitt escreveu que o dia em que Hitler se tornou chanceler do Reich alemão, em janeiro de 1933, foi o da verdadeira morte de Hegel. Schmitt estava, àquela altura, mais próximo de Hitler que de Hegel; mas seu dito não podia ser mais apropriado. As primeiras vítimas das fúrias fascistas foram precisamente os dois componentes da solda cristão-burguesa de Hegel: o princípio cristão da individualidade, alimentado através de uma longa incubação histórica no Ocidente, e o princípio burguês de uma sociedade civil autônoma, surgida com o crescimento da modernidade na cultura e na economia”.

Parece que é exatamente contra esta solda cristão-burguesa a que se refere Merquior que se voltam as baterias do marxismo ocidental, representado pela Escola de Frankfurt. Merquior afirma que o marxismo ocidental é uma crítica - e não uma teoria totalizante, como sua vertente “original” - e que suas características são ecletismo, humanismo e cultura (no sentido de crítica cultural).


Junte às características apontadas por Merquior o fato de a teoria marxista exigir uma dicotomia entre base e superestrutura e teremos que o “marxismo ocidental” é hostil à “solda cristão-burguesa” que caracteriza Hegel e que foi atacada pelo totalitarismo de vertente fascista. O resultado é uma teoria crítica obcecada em atacar o que entende por status quo e na formação de uma geração de pensadores um tanto quanto ensimesmados em analisar a cultura e denunciar a luta de classes que a permeia.


O resultado, no entanto, não é tão ruim como é ridículo. Ao final, Merquior afirma que o marxismo ocidental corre o risco de virar apenas um penduricalho intelectual de professores universitários (convenhamos: Merquior foi profético) e que muito da teoria marxista ocidental é simplesmente irracionalidade, pura e simples. Se assim for (e acredito que assim é), a teoria crítica não sobreviverá ao teste da história.


O Anjo da História é, de fato, uma testemunha peculiar. O vento da história o arrasta para o futuro e de lá ele vê o marxismo ocidental em um cemitério intelectual, fadado à irrelevância, bem como o “marxismo clássico” sendo eternamente associado (com muita razão, diga-se) à fome, pobreza e totalitarismo.


Os que desembarcaram na estação Finlândia ao menos entraram para a história como líderes de um movimento revolucionário que, mesmo que para o mal, forjou o Século XX. Já os que desembarcaram em Frankfurt podem ser condenados à irrelevância.


O Anjo da História dirá.




 
 
 

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