Algumas notas sobre poesia- Drummond, Gullar e Bandeira
- Luiz Felipe Panelli
- 1 de nov. de 2021
- 10 min de leitura
Este texto é uma continuação do texto sobre estética, publicado em 31/12/2020
A questão da poesia é uma das mais intrigantes na análise de obras literárias. A introdução do estudo da linguagem poética nas escolas quase sempre se faz de forma muito inadequada. Ao aluno, jejuno em literatura, são dados alguns poemas de autores considerados consagrados, sem que haja qualquer chance de questionar o porquê do poema apresentado ser, supostamente, tão bom. Não se faz um estudo sistemático sobre o contexto em que os poemas foram escritos e as tradições poéticas; em regra, o poema é explicado ao aluno como uma rima bonitinha (e bobinha) ou - horror dos horrores - como uma forma de afirmar uma militância política.
Ocorre o óbvio: a perda de interesse na linguagem poética. Não espero, é claro, que todos sejam poetas ou leitores de poesia - há os que não têm qualquer interesse no gênero e não há demérito algum em tal desinteresse. O problema é a perda de oportunidade de discutir, de forma mais profunda, algo que realmente é sério.
Tive o interesse tardiamente despertado para a linguagem poética. Demorou para que eu percebesse a potência linguística que era um bom poema e demorou também para que eu admitisse que um bom poema vale mais para um idioma do que muita prosa medíocre. Parte disto é culpa minha, claro, mas parte foi culpa do meio. Enfim, deixemos os culpados de lado; não estamos em um julgamento.
Uma vez que se desperte para a poesia, creio que é necessário fazer uma análise séria a respeito da qualidade de alguns poemas. Esta análise esbarra em um primeiro problema, que é o domínio da métrica poética, que não é tão simples. Afinal, se você não domina algo, não deveria se atrever a fazer qualquer crítica, certo? Bem, apesar de acreditar que o domínio da métrica poética é utilíssimo e deve ser estimulado, não creio que ele seja absolutamente essencial para fazer qualquer consideração sobre a qualidade da obra de um poeta. É possível analisar um texto poético sobre outros aspectos. Aliás, a análise de um texto poético sem levar (tão) em conta a questão da métrica tem a bem-vinda consequência de permitir um diálogo mais franco a respeito da justiça do mérito que é dado, tradicionalmente, a alguns autores.
Reitero: métrica é importante, mas ela pode servir para dar uma “carteirada” literária e afastar um público qualificado do debate. “Quem é você para criticar o Fulano, você que nem sabe a diferença de uma redondilha para um dissílabo?” Pronto, é o que basta para fazer parte da plateia - sempre mais interessada em “lacração” do que em um debate propriamente platônico - ir ao delírio por conta da suposta humilhação do sujeito que, ao ousar dar a opinião sobre um poema, cometeu a imprudência de contrariar os donos do clubinho literário.
Ignoremos tudo isto. O que quero, neste texto, é fazer uma análise mais personalista de alguns poemas que considero de grande valor e outros que considero...menos palatáveis, digamos assim...a despeito de serem muito queridos pela crítica.

Vejamos o seguinte poema, intitulado “Os dois vigários”, do imprescindível Carlos Drummond de Andrade:
“Há cinqüenta anos passados,
Padre Olímpio bendizia,
Padre Júlio fornicava.
E Padre Olímpio advertia
e Padre Júlio triscava.
Padre Júlio excomungava
quem se erguesse a censurá-lo
e Padre Olímpio em seu canto
antes de cantar o galo
pedia a Deus pelo homem.
Padre Júlio em seu jardim
colhia flor e mulher
num contentamento imundo.
Padre Olímpio suspirava,
Padre Júlio blafesmava.
Padre Olímpio, sem leitura
latina, sem ironia,
e Padre Júlio, criatura
de Ovídio, ria, atacava
a chã fortaleza do outro.
Padre Olímpio silenciava.
Padre Júlio perorava,
rascante e politiqueiro.
Padre Olímpio se omitia
e Padre Júlio raptava
patroa e filhas do próximo,
outros filhos lhe aditava.
Padre Júlio responsava
os mortos, pedindo contas
do mal que apenas pensaram
e desmontava filáucias
de altos brasões esboroados
entre moscas defuntórias.
Padre Olímpio respeitava
as classes depois de extintos
os sopros dos mais distintos
festeiros e imperadores.
Se Padre Olímpio perdoava,
Padre Júlio não cedia.
Padre Júlio foi ganhando
com tempo cara diabólica
e em sua púrpura calva,
em seu mento proeminente,
ardiam em brasas. E Padre
Olímpio se desolava
de ver um padre demente
e o Senhor atraiçoado.
E Padre Júlio oficiava
como oficia um demônio
sem que o escândalo esgarçasse
a santidade do ofício.
Padre Olímpio se doía,
muito se mortificava
que nenhum anjo surgisse
a consolá-lo em segredo:
“Olímpio, se é tudo um jogo
do céu com a terra, o desfecho
dorme entre véus de justiça.”
Padre Olímpio encanecia
e em sua estrita piedade,
em seu manso pastoreio,
não via, não discernia
a celeste preferância.
Seria por Padre Júlio?
Valorizava-se o inferno?
E sentindo-se culpado
de conceber turvamente
o augustíssimo pecado
atribuído ao Padre Eterno,
sofre — rezando sem tino
todo se penitenciava.
Em suas costas botava
os crimes de Padre Júlio,
refugando-lhe os prazeres.
Emagrecia, minguava,
sem ganhar forma de santo.
Seu corpo se recolhia
à própria sombra, no solo.
Padre Júlio coruscava,
ria, inflava, apostrofava.
Um pecava, outro pagava.
O povo ia desertando
a lição de Padre Olímpio.
Muito melhor escutava
de Padre Júlio as bocagens.
Dois raios, na mesma noite,
os dois padres fulminaram.
Padre Olímpio, Padre Júlio
iguaizinhos se tornaram:
onde o vício, onde a virtude,
ninguém mais o demarcava.
Enterrados lado a lado
irmanados confundidos,
dos dois padres consumidos
juliolímpio em terra neutra
uma flor nasce monótona
que não se sabe até hoje
(cinqüenta anos se passaram)
se é de compaixão divina
ou divina indiferença.
A genialidade de Carlos Drummond de Andrade é conhecida por todos. Este poema, porém, não é dos mais famosos que o poeta mineiro escreveu, mas é, por mim, considerado um dos mais instigantes. Além do alto valor literário, há também indagações filosóficas sérias. A questão da existência de Deus e, no caso Dele existir, da Sua natureza, é talvez a principal questão filosófica. A ideia de um Deus indiferente, para quem o comportamento humano é irrelevante, parece a alguns alentadora e, a outros (grupo no qual me incluo), assustadora.
Por que Olímpio, bom padre, foi alvo da ira divina, tal e qual Júlio, mau - péssimo, na verdade - sacerdote? Seria Deus indiferente? Ou Deus sequer existiria? Se Ele não existe, o universo é absurdo? Tão absurdo a ponto de que duas pessoas absolutamente distintas, quase antagônicas, tenham o mesmo fim banal, fulminados por raios produzidos pelo acaso?
José Guilherme Merquior - crítico e ensaísta de erudição invejável, modelo de intelectual, sempre impecável em suas análises - afirma que “Dois vigários” é uma das problematizações da questão do pecado, muito presentes na obra do agnóstico Drummond, que usa sua poesia para tratar de temas filosóficos. O crescente ascetismo de padre Olímpio, como que para compensar as falhas de padre Júlio, não surte efeito.
Cito Merquior:
“Padre Olímpio respeitava a ordem social, Padre Júlio a desprezava. Mas o padre virtuoso começa a pôr em dúvida a impassibilidade do céu diante das faltas do pecador, e em sua mansuetude exemplar, toma sobre si os crimes do outro, torna-se cada vez mais ascético. Em vão: os fiéis abandonam a austera virtude de um, atraídos pela malícia do mau padre, até o dia em que o céu pronuncia sua impenetrável sentença” MERQUIOR, José Guilherme. Verso Universo em Drummond. 3ª edição. São Paulo: É Realizações, 2012, pág. 285.
Após estes comentários, Merquior fala brevemente sobre a possibilidade de tais personagens já terem sido usados anteriormente em romances escritos por conterrâneos de Drummond e passa a analisar outros poemas. A análise de Merquior sobre “Dois vigários”, apesar de - como sempre - muito interessante, é também breve. “Dois vigários” simplesmente não é um dos poemas mais famosos de Drummond; a crítica e o público não lhe deram grande atenção.
Não sei explicar o porquê deste poema ter sido relegado à segunda categoria. Me parece tão ou mais brilhante quanto os mais famosos de Drummond. O fato é que parece haver, por parte da crítica especializada, uma predileção por alguns poemas na obra de determinado autor que nem sempre são os melhores, mas são os mais provocativos. Um bom exemplo está contido na obra de Ferreira Gullar. O sensacional “Cantiga para não morrer” é muitas vezes preterido por outros poemas, que não são nem de longe tão belos. Por quê? Talvez a explicação esteja no fato de “Cantiga para não morrer” ser muito tradicional e a obra de Gullar ter elementos bastante disruptivos, especialmente na época do neoconcretismo.
CANTIGA PARA NÃO MORRER
Quando você for se embora,
moça branca como a neve,
me leve.
Se acaso você não possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração.
Se no coração não possa
por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar.
E se aí também não possa
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento.
A crítica, porém, dá mais atenção à fase neoconcreta de Gullar, que produziu obras como “Girassol”:
girafa farol
gira
sol
girassol faro
indicação de leitura:
5 4
1
2
6 3
“Girassol” é interessante, mas não é belo. Pode-se dizer que, ao fazê-lo, Gullar não estava preocupado com o conceito de beleza, mas em expandir o limite da linguagem. É uma crítica válida, mas creio que, atualmente - em um mundo cada vez mais vulgar e mais carente de beleza - “Cantiga para não morrer” é um poema mais necessário do que “Girassol”. O neoconcretismo simplesmente não resistiu bem ao tempo, assim como outras modas lançadas no Século XX. Se vivemos em uma época de perda de valores, de menosprezo pelo sentido tradicional de beleza e da necessidade de uma urgente retomada de certas tradições, pouco importa que que “Girassol” seja “revolucionário”; o que queremos é justamente algo antirrevolucionário, que nos evoque um conceito de beleza mais tradicional. Isto, certamente, “Girassol” não faz, mas “Cantiga…” faz com maestria.

Não quero fazer uma crítica da crítica. Os críticos valorizam o que acham que é importante em um dado momento; nada impede que, com o passar do tempo, os mesmos críticos analisem novamente a obra de um autor sob outro prisma. Se a crítica entende(u) que “Girassol” tem mais valor que “Cantiga…”, que seja. Da mesma forma, a crítica vai ao êxtase com o longo “Poema Sujo” que, apesar de muito interessante, me parece um pouco datado. Em compensação, um poema de temática simples, como “Electra II”, impressiona, de novo, pela beleza, pela simplicidade, pelo fato de ser despretensioso (o que “Poema Sujo” não é, convenhamos) e pelo sucesso em evocar imagens e sentimentos.
Vejamos:
ELECTRA II
Qualquer coisa
eu esperaria
ver
no céu
da rua Paula Matos
aquele dia por volta
das dez da manhã
menos
um Electra II
da Varig (entre
os ramos quase
ao alcance
das mãos)
num susto!
II
Foi um susto
vê-lo: vasto
pássaro metálico
azul
parado
(um
segundo)
entre
os ramos rente
aos velhos telhados
àquela hora
da manhã,
de dentro de meu carro.
III
Electra II é
para mim
ponte aérea
Rio-S. Paulo
é cartão
de embarque
na mão e vento
nos cabelos
é
subir a escada
e voar
Electra II
para mim
é a cidade
do alto a ponte
e a salgada
baía
e a Ilha
Fiscal
antes de pousar
e sentir depois
o odor
do querosene
ardente
Natural pois
encontrá-lo
no aeroporto
Santos Dumont
mas nunca
na rua Paula Matos
ainda que
acima da minha
cabeça (e
das casas)
espiando
entre os ramos
como se me buscasse
pela cidade
IV
Os moradores
da rua ignoram
que naquele
instante
um poema
tenha talvez
nascido
não escutaram
seu estampido
conversavam
na sala na
cozinha ou
preparando
o almoço
e
no quintal
alguém ergue
um girau
para plantas
Se fosse um assalto
com tiros um crime
de morte na esquina
todos saberiam mas
na rua havia
aquela hora
muito barulho:
de cão
de moto
e do próprio avião
que gerou o poema:
são vozes do dia
que ninguém
estranha: como
o trepidar
do tempo
que escorre
da torneira
por isso
se um poema
nasce
ali não se percebe
e mesmo se
naquele momento
fizesse total
silêncio
na rua
ainda assim
ninguém ouviria
detonar
o poema
porque seu estampido
(como certos
gritos)
por alto demais
não pode ser ouvido
Talvez que um gato
ou
um cão
e quem sabe o
canário
– de melhor ouvido –
tenham escutado
a detonação.
Com simplicidade, Gullar trata de forma muito competente da questão da criação poética, do espanto - mesmo que com coisas simples - da questão sensorial (sempre presente em sua obra) e até, de certa forma, da nossa vida urbana, já meio caótica quando da edição do poema.
“Electra “II é tão valioso como “Poema Sujo”? A crítica acha que não, certamente. O fato é que “Electra II” é bem mais simples e, por conta desta simplicidade, talvez tenha mais capacidade de impressionar um público não tão habituado à linguagem poética neste Século XXI tão carente de referenciais de beleza.

Chegamos em um ponto interessante. E o público, o que acha? Falamos muito da crítica especializada, mas pouco do público. Isto se dá, creio, por conta de um fator bastante conhecido e pouco comentado: o público não lê poesia. No Brasil, lê-se muito pouco de forma geral e a poesia deve ser um dos gêneros menos lidos. O leitor de poesia é, geralmente, um estudante (que o faz por obrigação, como no caso do ensino básico ou por conta de algum trabalho acadêmico mais desenvolvido, no caso do ensino superior), um linguista ou um crítico.
Se for para especular uma causa, eu diria que há certa fama de que a poesia é “difícil”. Quem mais colabora para esta fama é, justamente, a crítica especializada, os acadêmicos e os linguistas. O que aconteceria se submetêssemos poemas de Ferreira Gullar ao grande público e deixássemos que ele elegesse os melhores? Arrisco a dizer que “Electra II” bateria “Poema Sujo” e aposto que “Cantiga…” venceria “Girassol”. Isto significa que o público não sabe avaliar corretamente? Talvez. A cultura popular é, reconhecidamente, mais pobre que a cultura erudita.
Sim, foi isso mesmo que eu disse e, para que não haja maiores dúvidas, repito: a cultura popular é mais pobre do que a erudita. Pior: a cultura popular está mostrando uma tendência de se tornar cada vez pior - quem já teve a desagradável experiência de pegar um Uber e ouvir as músicas reproduzidas no rádio do motorista sabe do que estou dizendo. Não entendo o motivo do motorista se submeter à tortura do forró universitário se pode, com um clique, fazer tocar uma grande obra da música clássica (ou erudita, se preferirem). Vivemos em uma época de acesso imediato e ilimitado ao que a Humanidade produziu de melhor. E não, o forró universitário não tem o mesmo valor estético de uma grande sinfonia; há uma diferença qualitativa enorme. Não sou, nem nunca serei, um expert em música, mas não preciso sê-lo para dizer que Mozart tem mais valor que axé.
Eis aqui o ponto: a crítica, os acadêmicos, etc., se mostraram excessivamente convencidos (coagidos?) com a mentira do relativismo cultural. Ao fazê-lo, prestaram um desserviço ao público, porque deixaram de apontar a ele aquilo que era melhor (sim, existe pior e melhor em arte). Julgar é, afinal, o propósito da crítica.

Termino com um dos meus poemas favoritos, “Profundamente”, de Manuel Bandeira. Acredito que a enorme força deste curto poema está no tema importante que ele aborda (a morte, a passagem do tempo, a sensação da perda) e em uma proposta estética que é é simples e competente, não se propondo a ser revolucionária. E isto apesar de Bandeira ter sido ligado à semana de 22, o que não deixa de ser um paradoxo dos mais interessantes.
PROFUNDAMENTE
Quando ontem adormeci
Na noite de São João
Havia alegria e rumor
Estrondos de bombas luzes de Bengala
Vozes cantigas e risos
Ao pé das fogueiras acesas.
No meio da noite despertei
Não ouvi mais vozes nem risos
Apenas balões
Passavam errantes
Silenciosamente
Apenas de vez em quando
O ruído de um bonde
Cortava o silêncio
Como um túnel.
Onde estavam os que há pouco
Dançavam
Cantavam
E riam
Ao pé das fogueiras acesas?
- Estavam todos dormindo
Estavam todos deitados
Dormindo
Profundamente
*
Quando eu tinha seis anos
Não pude ver o fim da festa de São João
Porque adormeci
Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo
Minha avó
Meu avô
Totônio Rodrigues
Tomásia
Rosa
Onde estão todos eles?
- Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente.
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