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O povo brasileiro, de Darcy Ribeiro: breves reflexões críticas

  • Foto do escritor: Luiz Felipe Panelli
    Luiz Felipe Panelli
  • 20 de jan. de 2020
  • 9 min de leitura

Atualizado: 20 de jan. de 2020

Terminei de ler O povo brasileiro, de Darcy Ribeiro, com alguns sentimentos conflitantes. Fui tomado, no meio da leitura, de uma sensação de estar tratando de um tema de ciências humanas pelo qual não tenho a menor familiaridade, a saber, a antropologia. O que sei eu sobre os índios? E sobre os negros que foram escravizados? Quando começo a ler sobre o tema, não me sinto um neófito aprendendo, mas um intruso em uma discussão que não me pertence.


Não me refiro, claro, ao conceito boçal de “lugar de fala”, cuja estupidez é tamanha que não merece maiores comentários. O problema, no caso, é que eu nunca tive (e nunca terei) um interesse sincero em antropologia para poder realmente aprender alguma coisa (ler, entender, refletir…). Daí por que me sinto tão estranho às discussões sobre a matéria: sei que jamais estarei habilitado a falar qualquer coisa sobre antropologia e aceito isto como uma limitação natural.


A despeito do mal-estar com a matéria, admito que Povo impressiona. É um estudo bastante impressionante, de grande fôlego, sobre a composição étnica brasileira, com especial ênfase nos índios, que teriam sido vítima de um genocídio, seja proposital ou acidental (por conta das infecções trazidas pelos portugueses, para as quais os índios não tinham imunidade). Ribeiro tinha um conhecimento muito grande do que falava e fez uma pesquisa muito completa, que levou anos de trabalho. Isto é bem exposto no prólogo, aliás, que é de leitura muito agradável, pois escrito num tom bastante confessional e informal. Ribeiro deixa claro que se trata de sua magnum opus e que escrevê-lo e reescrevê-lo foi tarefa de décadas. Admirável.


Mas por que decidi lê-lo? Não tenho uma resposta específica. Pode ser que haja em mim uma dúvida muito grande sobre uma identidade étnica-cultural que nunca achei que tivesse. Sempre entendi a identificação profunda com um grupo étnico, religiosa, racial ou nacional como algo estranho, curioso, até engraçado. Desnecessário dizer, passo longe da política identitária que hoje está tão em voga. Creio, porém, que a obsessão identitária, aliada à ascensão do nacionalismo no mundo todo me fez questionar a minha própria identidade. Em um momento de fraqueza, decidi lê-lo.


Imagem idealizada da chegada dos portugueses. Autor desconhecido

O significado de “ser brasileiro” sempre me foi uma questão secundária. Não me identifico, é certo, com o que o senso comum impõe como uma identidade brasileira. Durmo em jogos de futebol. Tenho em algumas vacas sagradas da cultura brasileira um exemplo de artistas secundários, menores, produzidos pela mídia para vender como “brasileiros”. De outro lado, não sou xenófilo; sei bem que o Brasil tem algumas características louváveis em relação a outros países. Nunca vi o Brasil como algo inferior, mas simplesmente desorganizado. Atrasado, talvez muito atrasado, mas não indigno.


A leitura de Povo foi, de certa forma, a busca por uma explicação deste atraso, por um sentido ou uma racionalização do fato de perceber o Brasil como uma peneira ocidental: as grandes ideias civilizacionais vêm para cá, mas numa versão empobrecida, sem vigor. O nosso constitucionalismo, por exemplo, por mais que tenha pontos importantes, acaba sendo uma eterna luta civilizacional para organizar como um Estado contemporâneo um país que, às vezes, parece ter vocação para uma sociedade pré-moderna. Nossas cidades são amontoados humanos de características arquitetônicas amorfas, que mal lembram o conceito estrangeiro de cidade. O Brasil parece um eco de um Ocidente distante.


Povo, paradoxalmente, esclarece confundindo. É admirável que Ribeiro tenha estudado tão profundamente a questão indígena, mas seriam os índios pré-colombianos um povo de características tão nobres? A antropofagia, que Ribeiro descreve com naturalidade, é uma prática aceitável? E as diversas guerras internas dentre as diferentes etnias indígenas? O fato dos índios terem sido vítimas dos europeus os alça à posição de heróis impolutos em um Eldorado maculado por algozes alienígenas?


Ribeiro, por exemplo, é rápido ao culpar o cristianismo de vertente católica trazido pelos portugueses como responsável por uma catequese forçada, que destruía a consciência indígena e os levava à loucura ao proibi-los de se relacionarem com o mundo através de seus mitos fundantes. Não é, porém, natural que religiões se espalhem e “contaminem” outras pessoas e povos? Não é isso que ocorreu, sempre, com o cristianismo e com o islamismo? Seriam os cristãos culpados de terem enterrado culturas politeístas europeias?


Aqui surge o primeiro problema da leitura de Povo: fica claro que Ribeiro, apesar do brilho inegável, pertence a uma geração de pensadores que foi influenciada por escolas de pensamento típicas do que o recém falecido filósofo inglês Roger Scruton chamou de “nova esquerda”, em que a presença de um marxismo vulgar e de um desconstrutivismo pós-modernista (no sentido de só haver significado quando contrastado com o oposto, formando uma infinidade de conflitos para cada conceito) estão muito presentes. Assim, se os índios, por mais complexa que fosse sua sociedade e por mais nuances que existam, como guerras internas, diferenças enormes entre as tribos, cultura guerreira, etc. são, inegavelmente, vítimas de um genocídio, os europeus são os algozes. Pouco importa que boa parte deste genocídio tenha se dado por contaminação de micro-organismos - coisa que os europeus não tinham sequer ideia do que era. E - e é aqui o principal ponto - o catecismo forçado teria sido uma forma inominável de violência, parte simbiótica do processo de desestruturação das sociedades primitivas e aniquilação de suas culturas.


Note-se que, do descrito acima, ignora-se o fato de que a ideia do catecismo era justamente salvar as almas dos catequizados, o que demonstra um reconhecimento de sua dignidade. Com esta afirmação, não nego nem por um minuto os horrores escravistas que foram impostos à população indígena, mas reflito sobre nuances históricas e culturais que passam batido por quem é tão influenciado pela “nova esquerda”. Talvez nem tudo se resolva com um binômio bom/mau.

O Abaporu, de Tarsila Amaral, serviu como símbolo do "movimento antropofágico", em que modernistas brincam com esta herança indígena e pregam uma arte nacional, bem como ironizam o fato do primeiro bispo católico no Brasil (bispo Sardinha) ter sido devorado por índios. Quase cem anos depois, o movimento modernista parece no mínimo estranho. Seria oportuno uma análise muito cuidadosa por parte da sociedade brasileira sobre seu legado...

Em Deus caritas est, o Papa Bento XVI, ao tratar do tema do amor de Deus (ágape), critica a doutrina marxista que afirma que os pobres não precisam de caridade, mas de Justiça. A caridade seria quase um exercício espiritual dos ricos que, dando esmolas, vêem-se livres de sua responsabilidade em um sistema injusto de classes que condena boa parte da população à pobreza.


Teriam os europeus, com seu catecismo imposto à força a índios e, posteriormente, negros, lavado a sua consciência dos horrores da escravidão que impuseram a estes dois grupos? Seriam tão cínicos a ponto de entender que podiam tranquilamente subjugar populações inteiras, condenado-as, primeiro, à escravidão e, depois, à pobreza e marginalidade, e ainda assim achar que agiram de forma ética porque cumpriram com sua missão de catequizar?


Ribeiro, em um trecho marcante de Povo, afirma que a vinda forçada dos negros trouxe características positivas e indeléveis à cultura brasileira (creio que, com isto, todos concordamos). Uma destas características seria um sincretismo religioso, no qual se destacaria a Iemanjá, a “primeira santa que fode”, desde a Grécia, e que teria sido responsável por aposentarmos o “ridículo Papai Noel”. Trata-se de uma exaltação (em si mesmo bem exaltada) da cultura popular brasileira que, ao fim, acabou por subverter o catolicismo imposto à força, dando-lhe ares de um paganismo sincrético, em que diferentes tradições entram em uma estranha simbiose, formando uma religião nacional. Pelo erotismo da Iemanjá, estariam vingadas as vítimas da catequese forçada, que tiraram a força vital de índios e negros.


Arrisco a dizer que é uma explicação simplista. O fato de o catecismo privilegiar o ágape - o amor complacente de Deus pelo homem, a criatura caída, e o esforço permanente de Deus para dignificar o Homem que, por um devaneio de Adão, escolheu se separar do seu Criador - não significa rejeição ao Eros, tão comemorado por Ribeiro no culto a Iemanjá. Cito um trecho de Deus caritas est (notando, é claro, que tal encíclica foi editada depois da morte de Ribeiro, bem como que Ribeiro se propôs a fazer um estudo antropológico, e não um estudo ético-filosófico sobre o amor cristão):

“Ao amor entre homem e mulher, que não nasce da inteligência e da vontade mas de certa forma impõe-se ao ser humano, a Grécia antiga deu o nome de eros. (...) Segundo Friedrich Nietzsche, o cristianismo teria dado veneno a beber ao eros, que, embora não tivesse morrido, daí teria recebido o impulso para degenerar em vício. Este filósofo alemão exprimia assim uma sensação muito generalizada: com os seus mandamentos e proibições, a Igreja não nos torna porventura amarga a coisa mais bela da vida? Porventura não assinala ela proibições precisamente onde a alegria, preparada para nós pelo Criador, nos oferece uma felicidade que nos faz pressentir algo do Divino? (...)”


“Mas, será mesmo assim? O cristianismo destruiu verdadeiramente o eros? Vejamos o mundo pré-cristão. Os gregos — aliás de forma análoga a outras culturas — viram no eros sobretudo o inebriamento, a subjugação da razão por parte duma “loucura divina” que arranca o homem das limitações da sua existência e, neste estado de transtorno por uma força divina, faz-lhe experimentar a mais alta beatitude. (...)”


“A esta forma de religião, que contrasta como uma fortíssima tentação com a fé no único Deus, o Antigo Testamento opôs-se com a maior firmeza, combatendo-a como perversão da religiosidade. Ao fazê-lo, porém, não rejeitou de modo algum o eros enquanto tal, mas declarou guerra à sua subversão devastadora, porque a falsa divinização do eros, como aí se verifica, priva-o da sua dignidade, desumaniza-o. De facto, no templo, as prostitutas, que devem dar o inebriamento do Divino, não são tratadas como seres humanos e pessoas, mas servem apenas como instrumentos para suscitar a “loucura divina”: na realidade, não são deusas, mas pessoas humanas de quem se abusa. Por isso, o eros inebriante e descontrolado não é subida, “êxtase” até ao Divino, mas queda, degradação do homem. Fica assim claro que o eros necessita de disciplina, de purificação para dar ao homem, não o prazer de um instante, mas uma certa amostra do vértice da existência, daquela beatitude para que tende todo o nosso ser.”

Teria Ribeiro sido simplista? Ele era dono de um pensamento sofisticado e conseguiu analisar o DNA do brasileiro. É considerado, ainda hoje, pensador brasileiro de primeira grandeza. Povo é referência na área de antropologia. Por que, então, alguns trechos de Povo são tão contestáveis? De fato, Povo é um livro que tem disparidades internas. O trabalho muito bem feito de análise do modo de vida tradicional dos índios e da formação urbana brasileira contrasta com uma xenofobia antiamericana quase caricata, além do uso das dicotomias simplificadoras, conforme mostrado acima.


Entra em cena um outro Darcy Ribeiro. Não o antropólogo de Povo, tampouco o escritor sincero que, em seu prólogo, narrou com leveza os diversos percalços que enfrentou para escrever sua magnum opus. O Darcy Ribeiro que vemos agora é o político aliado de Leonel Brizola, que adota um discurso nacional-desenvolvimentista típico das viúvas de Getúlio Vargas.


Este Darcy Ribeiro é mais antipático. Vê-lo falar provoca fastio, porque já sabemos todas as respostas. Luta de classes, proteção às indústrias, estatização, etc. Este Darcy participou por três vezes (pelas minhas contas) do Roda Viva, da TV Cultura, e numa delas, quando questionado a respeito do excessivo número de servidores públicos (parece que o Estado inchado é mal eterno do país), afirmou que a diminuição era impensável, porque causaria malefícios às famílias dos dispensados. Sequer cogitou no fato de que o Estado não deveria ser uma máquina de emprego, nem no mal que um Estado inchado faz à economia. A possibilidade de existir um corporativismo de servidores que domina os rumos do Estado jamais lhe passou pela cabeça.


“A classe dominante”, “incapacidade orgânica de criar um regime democrático”, “Brizola tem que ser presidente”, “temos que controlar o capital estrangeiro”, “Brizola é uma das figuras mais bonitas do Brasil”, “as classes dominantes estavam ameaçadas pela reforma agrária”, “o imposto sindical é uma invenção formidável”, tudo lembra um programa eleitoral do PT ou do PDT na década de 1990. Parece que, a qualquer momento, alguém vai entrar na tela e dizer “Fora FHC, fora ALCA, fora FMI”. Quem teve a oportunidade de crescer na década de 1990, ouvir tudo isso e depois ver o resultado de um governo de esquerda a partir de 2002, tem um olhar minimamente irônico sobre este Darcy Ribeiro político.

Sugiro ao leitor ver o trecho que vai dos 53 min 55 seg a 54 min 10 seg e 1h15min a 1h23min

O fenômeno do intelectual que é realmente vocacionado mas, por um motivo ou outro, se compromete de maneira irrefutável com uma corrente política, a ponto de virar um militante, não é tão raro no Brasil. Existe, também, aqueles que não têm o menor potencial para a vida intelectual e que, como forma de compensação, militam. No caso de Ribeiro, talvez não seja correto dizer que ele virou um militante. Povo é indispensável; talvez não haja nenhuma obra que tão bem dissecou a etnografia brasileira. Casa Grande, de Freyre, por exemplo, trata muito bem de problemas específicos, mas não se propõe a ser uma análise final, definitiva, sobre o povo brasileiro.


Ainda não li O Brasil como problema. Lerei. Não espero uma obra do fôlego de Povo, mas uma boa provocação. Creio que o Darcy Ribeiro que soube tão bem dissecar o país ainda tenha muito a contribuir para a sua compreensão, mesmo vinte e três anos após a sua morte. O Brasil, sabemos, não é exatamente um país muito fácil. É preciso, separá-lo do brizolista apaixonado, que defende o que há de mais atrasado no Brasil.

"Violeiro caipira", de Oscar Pereira da Silva. O modo de vida capirtia também é muito bem analisado por Darcy Ribeiro.

 
 
 

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