O homem-massa: Ortega y Gasset, Ratzinger e mal-estar ocidental
- Luiz Felipe Panelli
- 17 de fev. de 2020
- 8 min de leitura
Atualizado: 24 de jun. de 2022
“A rebelião das massas”, de Ortega y Gasset, é um daqueles livros que parecem ter sido escritos de forma profética. Não tenho dúvida da importância que teve para seu tempo, mas quase cem anos depois da sua publicação, tornou-se imprescindível. Arrisco a dizer que ele fala mais ao nosso tempo do que àquele em que foi escrito.
Vivemos hoje - e acho que tal conclusão é partilhada por pessoas que se situam nos mais diversos espectros da irritante divisão entre esquerda e direita - um malaise com relação à democracia. Parece que o sistema que foi criado para garantir uma governança legítima e moderada, que fosse continuamente se aperfeiçoando com base na experiência, falhou miseravelmente, permitindo formações políticas que desagradam a todos. O debate público, que tradicionalmente era intermediado por uma mídia crítica, tornou-se cacofônico. A impressão é que estamos num niilismo político barulhento, em que palavras não mais têm sentido e - pior - em que conceitos não servem para mais nada. Um pós-conceitualismo político, que torna o debate público tão horrendo quanto, justamente, o pós-conceitualismo artístico.
O “homem-massa”, de Gasset, é único porque perpassa a ideia de classe social (obsessão da ciência política ao menos desde o Século XVIII) e, democraticamente, reparte a culpa pelo mal-estar na civilização. Qualquer pessoa pode ser um “homem-massa”, independentemente da classe social ou outras formas de catalogação humana às quais recorremos diariamente na nossa loucura identitária. O que define o “homem-massa”, aliás, é a indisposição à reflexão e pensamento crítico, bem como sua incapacidade de se sobressair em qualquer campo da vida, seja intelectual, artístico, etc.
Que fique claro: “pensamento crítico” não deve ser tomado, de forma alguma, na vertente tediosa que se ensina a jovens universitários, no sentido de que devem ser “combativos” e “questionadores”. Gasset se define como um “aristocrata radical”, ou seja, um inimigo da noção contemporânea de igualdade, que vê todos os homens como tendo as mesmas qualidades e defeitos. Precisamente esta noção de igualdade, que em muito difere da igualdade de todos perante a lei (tão cara ao pensamento iluminista) e acaba se assemelhando mais à ideia de igualitarismo, gera o que Gasset tem como um abominável desprezo da massa por cultura e instituições tidas por superiores. Hoje, aliás, fala-se em “equality of outcome” ao invés de “equality of opportunities”, sem se atentar ao perigo inato à ideia de uma sociedade onde todos sejam estritamente iguais, tenham a mesma riqueza e possam ocupar os mesmos lugares, sem necessidade de medir esforço e talento. Seria a morte da aristocracia louvada por Gasset.
O homem-massa se sente ameaçado por qualquer coisa que perceba como mais refinada e, exposto a ela, torna-se arisco, disposto a ridicularizar quem percebe como superior. A ridicularização é necessária como um ritual de expiação coletiva, em que os homens-massa se asseguram reciprocamente que a suposta superioridade percebida em outra pessoa é desprezível e não é motivo de inquietação. O status da mediocridade tem que ser salvaguardado de qualquer superioridade cultural que possa gerar inquietação, e isso - a segurança de que nada poderá abalar o homem-massa - é algo que se consegue coletivamente.

Há palavras que evocam sentimentos fortes, de tal modo que, logo ao mencioná-las, somos forçados a nos explicar. A necessidade de justificar um pensamento que contrasta com o esperado, aliás, é uma constante na época atual, que parece ter saído de algum pesadelo de Gasset. Exemplo maior disto é o conceito de “aristocracia”, tão valorizado em Rebelião. A palavra “aristocracia” nos remete a um regime de privilégio sem dever, em que algumas pessoas são, sem justificativa, tidas como melhores que as outras. Ninguém gostaria de ir ao debate público e se dizer um aristocrata, sob pena de ser ridicularizado ou excluído; na melhor das hipóteses, será considerado um curioso excêntrico. “Aristocracia” funciona para nós como um gatilho de uma suposta herança intelectual dos últimos trezentos anos que classifica como altamente injusto qualquer diferenciação entre homens.
Tal definição de “aristocracia”, nas palavras de Gasset, nada mais é do que um erro conceitual. O aristocrata é alguém que se provou melhor e, por isso, tem mais deveres. Eventualmente, de tais deveres virão mais direitos. O homem que é (culturalmente) melhor tem o dever de assumir a vanguarda da sociedade e arcar com os ônus que decorrem de tal ato. A aristocracia é tão natural quanto inevitável, pois numa sociedade de desiguais sempre surgirão pessoas destacadas. O aristocrata comumente visto no imaginário popular, ou seja, alguém que é improdutivo, não tem méritos e só tem vantagens hereditárias, representa uma corruptela do conceito tradicional de aristocracia.
Não posso deixar de admirar a coragem de Gasset ao defender o regime aristocrático. De um lado, ele se insere em uma linhagem platônica de pensamento, que vê como natural uma seleção entre homens e percebe que a democracia é um regime que nasce corrupto. De outro, porém, ele ousa ser um homem fora do tempo, que propaga uma ideia desagradável para as sociedades contemporâneas. Gasset nunca permitiu que sua ideia de “aristocracia radical”, servisse ao autoritarismo ou ao totalitarismo, que estavam tão em voga no seu tempo. A definição de sociedade como “aristocracia radical” é, justamente, o de que uma sociedade ascende na medida em que é aristocrática (de novo, no bom sentido do termo) e descende na medida em que se afasta do conceito de aristocracia. O “radical”, explica Gasset, não se dá porque ele acha que deve ser assim - como se ele não admitisse outra forma de pensamento - mas porque, em seu entendimento, é necessariamente assim. Sociedade é aristocrática da mesma forma que barbárie é democrática, e de novo vemos uma forte herança platônica nisso tudo.
Quem hoje defenderia a ideia de aristocracia de Gasset? A maior parte do nosso debate político é uma vulgaridade partidária fraquíssima. A todo o momento, homens emulam virtudes que não têm, em um cinismo amplamente aceito. Se a retomada de uma ideia de aristocracia (de novo, no bom sentido do termo, que Gasset salienta) nos salvar da banalidade e mediocridade do atual debate político, não seria um preço pequeno a se pagar? Seria, aliás, um preço? Diante do cinismo geral, quem teria coragem de defender tal ideia?

Curiosamente, Gasset escolhe como seu alvo a epítome do homem-massa, que é o “senhorzinho satisfeito”. Trata-se de um especialista em alguma área do conhecimento humano que tem razoável sucesso profissional e que, por algum motivo, sente-se autorizado a participar do debate sobre os grandes temas. O “senhorzinho” é bem exemplificado, hoje, pelo profissional liberal, que fez um curso superior com fins meramente profissionalizantes e que insiste em não reconhecer a sua inserção na coletividade do homem-massa.
Este “senhorzinho satisfeito” tem como uma das suas principais características a negação de um sentido dramático ou trágico de destino, ou até a negação do destino como um todo. Negando o destino, diz Gasset, o “senhorzinho” transforma a vida toda em farsa. Nada nele é autêntico, nem a crença, nem a convicção. É tudo modismo.
O homem-massa não tem raiz, diz Gasset. Ele é levado pelo vento da moda ideológica. É todo presente, sem passado e sem história. É todo vaidade, sem reflexão. Rejeita o trágico, mas torna-se leve e frágil como pó. E o pó, sabemos, costuma ser um dos símbolos da morte.

A reflexão trazida por Rebelião me empurrou por outro texto, de um pensador que, como Ortega, é essencial para entender o mundo atual, mas tem um estilo de escrita muito diferente. A frenesi e a incisividade de Ortega dá lugar a uma precisão e elegância muito calmas, que transbordam certa paz típica de quem teve uma vida bem peculiar. Me refiro ao texto inaugural de Deus existe?, livreto que é a transcrição de um diálogo entre Joseph Ratzinger (papa Bento XVI) e o prof. Paolo Flores. O livro começa com um texto de Ratzinger, parte para a transcrição do debate e termina com outro longo texto, desta vez de Flores. Aqui, irei me referir apenas ao texto inaugural de Ratzinger, intitulado “A pretensão da verdade posta em dúvida”.
Ratzinger afirma que o cristianismo sempre teve a pretensão de ser uma religião racional, com forte base filosófica, mas que a crise da metafísica e sua substituição pela física na modernidade acabaram colocando o cristianismo em xeque. Mais do que isso, a Europa do Século XX começa a viver uma “crise da verdade”, que é resultado (e neste ponto, parece que Ratzinger concorda com Gasset) de alguns excessos do Século XIX. É como se a primeira metade do Século XX visse uma Europa letárgica, se recuperando de uma atividade irresponsável no século anterior.
A “crise da verdade” traz a restauração de um relativismo, que Ratzinger sempre abominou, como ficou claro na sua homilia proferida antes do conclave que o tornaria o sucessor de Pedro. Este relativismo não só afirma que os modos de conhecer a Verdade (Deus) são múltiplos - o que torna a escolha do “caminho” quase irrelevante e passível de ser feita conforme necessidades imediatas de cada pessoa - como subtrai da Europa uma das principais conquistas do cristianismo, que é a pretensão de “desmitologizar” a religião, ligando a questão da fé à racionalidade. Isto, por consequência, acaba desligando a religião da política, tal como era o paganismo que o antecedeu, cujos mitos se identificavam perfeitamente com dada comunidade política. O Deus do cristianismo deixa-se conhecer; a Verdade deixa de ser oculta (e descobri-la não é mais uma expedição, para o qual cada um pode escolher o caminho) para ser, de uma só vez, acessível e desnudada, tal qual um homem que anda, fala, vive com os demais e, num gesto de extremo altruísmo, se sacrifica por todos.
A Verdade tem face, e é uma face humana, profundamente humana. Além de humana, é universal, pois transcende a pólis. “Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”, ou, da mesma forma, conhecereis a face humana de Deus, que é a Verdade em si, e será liberto. Esta “verdade” última era expressa, justamente, em um sacrifício último, que foi a crucificação de Cristo.

Ratzinger e Gasset parecem concordar que o tecido que formava a Europa - a civilização europeia, melhor dizendo - se esgarçou. Ratzinger aponta para a trinca Descartes-Espinosa-Kant, que culminaria no materialismo absoluto de Marx e Comte, resultando, como já exposto, em um atenuamento da divisão entre física e metafísica, até o ponto em que esta desaparece, dando primazia àquela na resposta a todos os problemas humanos. Gasset é mais obcecado com o Século XIX. Ambos, porém, sustentam que o novo homem (o “senhorzinho satisfeito” de Gasset) é - ou pretende ser - autossuficiente, à medida que tem suas próprias verdades, e delas é tão convicto - e as usa para justificar a própria vida de forma tão intensa - que não admite contestação.
Sintomático, portanto, que Rebelião tenha sido escrito na década de 30 do Século XX, em que as ideologias totalitárias tiveram prestígio e ascensão. Ratzinger sentiu isso ao ter que viver a dura realidade totalitária alemã da época, enquanto Gasset viu a Espanha ser dilacerada por uma guerra civil. Não pararia por aí, como sabemos. A Espanha conseguiu se ver livre do socialismo, mas amargou décadas de um regime autoritário, enquanto a Alemanha, após sucumbir aos horrores do nacional-socialismo, foi cindida ao meio e teve sua parte oriental transformada em um brutal Estado de Polícia socialista.
Ironicamente, o fator geopolítico que permitiu (consideradas, é claro, as peculiaridades de cada país) a volta à democracia liberal foi o fim da Guerra Fria. No caso da Espanha, a necessidade de alinhamento com o Ocidente e o fim de uma ameaça socialista permitiram que, no fim da década de 70, quando a URSS dava sérios sinais de cansaço, o país voltasse à normalidade. Já a Alemanha oriental teve que esperar a vitória derradeira do Ocidente na Guerra Fria.
É irônico, mas não é fruto do acaso, que um dos principais atores responsáveis pelo ocaso ideológico soviético tenha sido o Papa João Paulo II (cujo país natal também sofreu os horrores socialistas), de quem Ratzinger era o braço direito. A Guerra Fria teve o seu lado poético, como todo confronto ideológico.
Desta Guerra Fria somos, de certo modo, herdeiros. O niilismo que se instaurou com o seu fim - o “fim da história”, como diziam - permitiu a ascensão final do homem-massa de Gasset, que ganhou enorme vigor com o desenvolvimento tecnológico das telecomunicações, permitindo que a opinião (mesmo que tosca) de qualquer um fosse ouvida e dissolvendo o papel de guardião da esfera pública que a mídia tradicional outrora ostentava. Daí para a cacofonia à qual aludi no começo do texto foi um curto pulo.
Solução? Para Ratzinger, provavelmente precisamos de um catolicismo revigorado (não digo “restaurado”), que possa reanimar a Europa e acordá-la do seu estado catatônico. Para Gasset, talvez seja necessário o confronto com o mito da igualdade radical (que só se aprofunda com o histerismo do equality of outcome) e instauração de uma nova aristocracia.
De todo o modo, devemos lembrar da famosa homilia de Ratzinger (com a qual tenho certeza que Gasset, independentemente de qualquer questão religiosa, aplaudiria) e criticar uma sociedade cujo propósito último seja a satisfação do próprio ego.
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