Jorge Amado e os Subterrâneos da Liberdade
- Luiz Felipe Panelli
- 8 de jul. de 2021
- 10 min de leitura
Atualizado: 10 de jul. de 2021
Tive contato com a obra de Jorge Amado pela primeira vez no colégio, com o primitivo Capitães da Areia. “Primitivo”, no caso, não visa denegrir o romance, que é bem interessante, mas indicar que o autor estava pouco maduro. Salta aos olhos o intuito político do livro, que funciona como uma propaganda da ideologia comunista. Se o leitor consegue relevar as partes mais panfletárias e desconsiderar o fato de que bandidos são retratados como heróis, o livro fica bom. O problema é que, ao ignorar isso, a própria essência do livro fica comprometida.
Por conta de Capitães, ignorei Jorge Amado por anos. Voltei a me interessar pelo escritor baiano quando, preparando uma aula sobre socialismo, me deparei com esse vídeo:
Admiro a coragem de quem admite um engano (ou ter sido enganado). Ademais, fiquei curioso pela menção que o vídeo faz ao romance Subterrâneos da Liberdade; tenho grande interesse na década de 30 do Século XX, na questão do totalitarismo, do Estado Novo, etc. Impelido por tudo isso, li os três volumes de Subterrâneos.
A primeira dúvida que me acometeu foi a respeito da “maturidade” do Jorge Amado de Subterrâneos. Assim como Capitães, o livro é bem escrito; o autor fez um esforço bem sucedido na construção de um universo próprio (ainda que parasitário do momento histórico retratado) e, como consequência, criou uma narrativa das mais interessantes, com personagens memoráveis. Subterrâneos é uma daquelas obras que faz com que você desenvolva um interesse sincero na narrativa e no destino dos personagens, coisa que algumas obras mais importantes da literatura não conseguem fazer (se alguém já leu Madame Bovary provavelmente sabe do que estou falando…). A despeito do mérito literário, que se tornava claro enquanto lia, a questão da “maturidade” em contraposição ao “primitivismo” de Capitães me intrigava: afinal, o Jorge Amado de Subterrâneos era tão diferente do Jorge Amado de Capitães?
Os três livros que compõem a trilogia são impecáveis. Jorge Amado sabe desenvolver personagens, usar excepcionalmente bem a ambientação do terrível Estado Novo, narrar passagens consideráveis de tempo de maneira muito competente, enfim, tudo é muito bem feito. O livro é tão bom que me despertou um desejo sincero de voltar à sua obra, coisa que a leitura do panfletário Capitães, na adolescência, me desencorajou. Após ler Subterrâneos, é impossível negar que Jorge Amado é um grande escritor.
Nem tudo, porém, é perfeito. Ao contrário do que o vídeo me fez crer, Subterrâneos não é uma obra mais “madura” no sentido político. Jorge Amado continua esbanjando uma paixão pueril não só pelo comunismo como ideia, mas pelo partido comunista enquanto instituição. Os personagens formam uma dicotomia: há os comunistas, que são bons, resilientes às mazelas da vida, solidários e capazes de atos verdadeiramente altruístas e os anticomunistas, que são o oposto de tudo isso: mesquinhos, interesseiros, falsos e perversos.
Há mais: conforme bem notou o historiador Daniel Aarão Reis no posfácio que consta do terceiro volume da trilogia na edição da Companhia das Letras, A luz no túnel, os comunistas e os anticomunistas também podem ser divididos com relação ao exercício de sua sexualidade. A divisão é estranha aos que presenciam a política atual, marcada pela paranoia identitária e comportamental, em que a esquerda é definida e se define como o campo político-comportamental que promove a liberdade sexual enquanto a direita seria o campo político-comportamental mais casto (que reflexo horrível dos tempos é ter que escrever o termo “campo político-comportamental”....). Em Subterrâneos, os comunistas exercem sua sexualidade de forma mais contida, sem alardeá-la, em geral dentro do casamento e visando a reprodução, ao passo que os anticomunista são promíscuos, veem o amor romântico como uma risível mentira, encaram as convenções sobre sexualidade com enorme cinismo e tendem a tratar os outros como objetos sexuais.
Essa estranheza não escapa a quem lê, no Século XXI, Subterrâneos. Em um primeiro momento, não se entende o porquê do autor elencar a castidade como virtude (e, portanto, propriedade dos comunistas). Não é a esquerda, afinal, que prega o hedonismo, a quebra dos padrões comportamentais, a relativização moral? Não somos bombardeados com a imagem de “artistas e intelectuais” de esquerda que nos ditam comportamentos cada vez mais promíscuos? Alguns partidos de esquerda, aliás, não são excessivamente focados na questão moral-comportamental?

Temos duas questões a tratar: a primeira é essa inversão da expectativa do comportamento sexual dos personagens. Por que um comunista ortodoxo (filiado ao Partidão) e que escreveu o livro em 1954 apresenta a castidade (ou ao menos a continência) como um comportamento bom (e, portanto, inerente aos comunistas) e a promiscuidade como um comportamento mau (logo, inerente aos anticomunistas)? Por que isso é tão antinatural - ou anti-intuitivo - para quem lê o romance no Século XXI? Jorge Amado errou ou houve alguma mudança significativa entre a publicação do livro e o momento da leitura?
A segunda é relativa à forma como duas cenas do último volume da trilogia, A luz no túnel, são retratadas. Me refiro às cenas em que um dos heróis comunistas é interrogado na prisão por um juiz, expondo as torturas às quais fora submetido e a cena final, em que uma das heroínas comete um ato impulsivo, que a levará à prisão - o que significa tortura e separação do seu pequeno filho - porque não resiste à oportunidade de se solidarizar com o líder comunista Luís Carlos Prestes, que estava sendo julgado por um tribunal de exceção. Jorge Amado constrói a narrativa destas duas cenas de forma quase religiosa; a construção de ambas as cenas é altamente cristianizada.

Não é novidade o uso de uma narrativa mítica-cristã em alguns projetos estéticos. No caso de A luz no túnel, o comunista interrogado pelo juiz demonstra uma coragem ímpar ao denunciar as torturas que ocorriam na cadeia, mesmo sabendo que, na ditadura do Estado Novo, o juiz tinha pouco ou nenhum poder de impedi-las ou de colocá-lo em liberdade (e isso fica claro quando da sua remoção da presidência do processo) e que os responsáveis pelas torturas estão assistindo o depoimento e logo voltarão a tê-lo em sua custódia. O fato, porém, é que o preso se dispõe a falar a verdade independentemente de qualquer consequência - e isso é válido inclusive quando o juiz, interessado na psicologia por trás da motivação dos comunistas, passa a formular perguntas pessoais, fora dos autos. O comunista não teme contrariar o juiz, mesmo sob o risco de gerar antipatia.
É quase impossível não associar a cena ao interrogatório de Jesus perante Pilatos. Ora, é neste interrogatório que Pilatos formula a famosa pergunta sobre a natureza da verdade, que é didaticamente respondida por Jesus com a exposição do Seu próprio corpo, indicando ser Ele a encarnação da verdade (que é um atributo divino). Bem, se Jesus é a verdade e é divino, o comunista se assemelha a Ele? Jorge Amado certamente não quis deificar a figura do personagem, mas o discurso do comunista - não especialmente o discurso sobre a tortura, que demonstra uma coragem e resolução quase sobre-humanas, mas o diálogo com o juiz sobre a psicologia dos comunistas - tem um aspecto de revelação divina, Palavra revelada contra a qual a razão humana nada pode. O juiz sai do encontro menor do que entrou, tal e qual Pilatos.

A questão da deificação do comunista interrogado nos leva a outro ponto interessante: se, após o cristianismo, a Igreja entendeu que a mensagem divina deveria ser levada aos quatro cantos do mundo para o bem da salvação das almas, o que acabou cristalizado na doutrina do Extra Ecclesiam nulla salus (relativizada pelo Concílio Vaticano II), deve também a doutrina do comunismo e sua redentora revolução ser espalhada pelo mundo todo, a fim de salvar as almas dos injustiçados, em uma redenção imanente em contraposição à redenção transcendente do cristianismo?
O comportamento dos comunistas, que lembra muito o do cristianismo primitivo - perseguição, comunidades ocultas e muito coesas, solidariedade, fé - é embasado na possibilidade de uma redentora revolução que, para eles, não é mera possibilidade, é inevitabilidade. Não se discute o “se”, mas o “quando”. Ademais, se para os cristãos não há salvação fora da Igreja, para os comunistas haveria salvação fora do Partido? Se julgarmos pelos personagens de Subterrâneo, a resposta é um sonoro “não”. Ou você se converte e entra no Partido ou estará condenado. Como estamos falando de uma religião imanente, a condenação varia desde a sua caracterização como alguém inerentemente torpe e vil até a eliminação física, caso haja a famosa revolução. O show trial comunista é um julgamento divino.

Vamos à segunda cena que tem raízes (na minha humilde opinião, ao menos…) na mitologia cristã. Na cena final de A luz no túnel, a heroína Mariana não se contém e grita palavras louvando Luís Carlos Prestes, o que faz com que ele, mesmo sob pesada escolta policial, consiga virar o corpo e sorrir em retribuição. O livro termina com Mariana sendo presa e, sabemos, esta prisão pode acabar muito mal. Em uma cena anterior, angustiante, os comunista são barbaramente torturados na prisão e a única mulher do grupo é repetidamente estuprada pelos policiais. Ficamos pensando se o mesmo destino aguarda Mariana.
Ao gritar palavras em apoio a Prestes dentro da sede do Tribunal de Segurança (ou seja, com a certeza da prisão), Mariana arrisca a prisão e a tortura (ela sabia das violências do cárcere) e abandona o filho pequeno, que estava em uma casa em que ela temporariamente residia com um casal de amigos, também comunistas. Por quê? Para que? Que diferença faria para Prestes, tão experiente e resoluto, apresentado ao leitor como um semideus (só inferior ao divino Stálin, detentor de toda a bondade) o elogio de uma desconhecida? E mesmo que Prestes se importasse (vamos dizer que ele, como todo comunista nas narrativas de Jorge Amado, seja extremamente bondoso e dotado de uma sensibilidade absurda), o sacrifício de Mariana não foi desproporcional? A perda da liberdade, da integridade física, da companhia do filho pequeno, não é muito em troca de um simples elogio?
A questão é que Mariana é, no final, uma comunista e sente o dever de se solidarizar publicamente com Prestes. Agir da forma contrária seria contra sua essência (no decorrer do romance, alguns personagens discorrem sobre como ser comunista é a única opção ética e existencial aceitável).
Em um primeiro momento, logo após o término da leitura, pensei que Jorge Amado não se livrara do “primitivismo” de Capitães. Assim, Subterrâneos seria mais uma obra de um romancista genial, mas que sempre contamina suas criações com seu fanatismo. Era o caso de lamentar. Tanto potencial, tanto talento, resultando em obras aquém do ideal por conta do fanatismo. Se ao menos ele não tivesse sido um comunista fanático.
Posteriormente, porém, reformulei a ideia. Jorge Amado é o que é - com todo o seu brilho, com sua capacidade de fazer narrativas interessantíssimas - também por causa do comunismo. Tentar separá-lo do seu ideal político, tentando achar um Jorge Amado “puro”, mais “maduro”, significa apenas conjecturar sobre algo inexistente. Se não houvesse o Jorge Amado militante, talvez não houvesse o Jorge Amado escritor.
O mundo é como ele é. Não é perfeito. Os homens, muito menos. Jorge Amado foi um grande romancista e Subterrâneos é excelente, tudo isso a despeito das suas falhas, ou, melhor dizendo, tudo isso também por causa das suas falhas.

Vamos à questão da sexualidade. Não creio que Jorge Amado fosse um apologista da castidade. O fato, porém, é que a sexualidade dos personagens é dividida de forma estanque e os bons têm a virtude da castidade e da continência. Por quê?
Faço uma digressão. Cheguei a Subterrâneos enquanto preparava uma exposição sobre o socialismo, que me levou à questão do totalitarismo e da década de 30. A obra foi escrita em 1954. Continuando na preparação das aulas, me deteve a questão do “neomarxismo” da Escola de Frankfurt, em especial a obra de Marcuse. A Escola de Frankfurt, no seu revisionismo da ortodoxia marxista, tem certas raízes na psicanálise (e, portanto, trata muito da sexualidade humana) e, em especial no que tange à obra de Marcuse, na crítica social.
O fato é que a ortodoxia marxista, com seus conceitos de revolução e partido de vanguarda (conceito leninista), parecem ter ficado superados. O neomarxismo frankfurtiano privilegia mais uma crítica feroz aos costumes e à sociedade, resultando em um esgarçamento do tecido social. A revolução ou se torna inevitável e fácil (é feita quase sem oposição, pois só sobrou uma sociedade apática) ou mesmo desnecessária, porque a mudança almejada já se deu, paulatinamente.
A sexualidade promovida por uma esquerda pós-Frankfurt é uma revolta contra uma amarra (real ou imaginária?) promovida por uma “sociedade tradicional”; assim, a sexualidade tem como objetivo chocar. Como o choque inicial é sempre absorvido, há necessidade de aumentar continuamente a dose, ou seja, de adotar um comportamento cada vez mais promíscuo, para tornar a chocar. A horrenda música funk, que parte da esquerda celebra como apogeu da cultura popular, é prova disso: o hit desse ano deve ser mais obsceno do que o do ano passado, que por sua vez é mais obsceno do que o do ano anterior. Nos infernais bailes funks, o sexo tem que ser cada vez mais explícito, feito com pessoas cada vez mais jovens (até beirar a ilegalidade), etc. O importante é chocar e, para isso, é preciso se superar em termos de depravação.

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Não, leitor, não sou um puritano. Não quero ditar regras de moral sexual a ninguém. Cada um faz o que quer, dentro da lei. Estou apenas constatando alguns fatos. O tema da sexualidade nem é do meu interesse; eu o abordo apenas porque é integrante dos demais temas de que trato.
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O ponto, porém, é que a ortodoxia marxista trazia um padrão de comportamento moral até que rígido. A atual esquerda frankfurtiana neomarxista jamais se enquadraria naquele padrão. Um militante padrão do PSOL, com sua obsessão identitária e sua imposição de padrões de comportamento e moral, não duraria muito na URSS, seja no período revolucionário, no pós-revolução ou no horror stalinista. Aliás, nem sequer após a desestalinização promovida por Khrushchev o nosso típico militante esquerdista atual - pense num jovem universitário, rico, branco e raivoso, que tem tempo de sobra e que gosta de fazer discursos inflamados “contra o preconceito”, obcecado com política identitária e que julga a tudo e a todos conforme a sua régua moral - se daria bem na ortodoxia soviética.
Isso me leva a pensar o seguinte: quando criticamos o marxismo hoje, estamos mirando no alvo certo? Não digo que a teoria de Marx não seja importante (é claro que é!). O ponto não são os marxistas; são os antimarxistas. Será que a refutação do marxismo não se concentra demasiadamente na ortodoxia marxista, ignorando o neomarxismo frankfurtiano? Sei que há autores de escol, como Scruton, que trataram dos neomarxistas, mas sinto que ainda não há uma refutação organizada e sólida contra essa vertente frankfurtiana, ora dominante. O que há é uma rejeição, muitas vezes baseada em um moralismo conservador-religioso que só alimenta a esquerda neomarxista. Pensemos, por exemplo, nos horrores da retórica tosca da direita que hoje está no poder. É um verdadeiro presente dos céus à esquerda.
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Deixando os marxismos de lado, o fato inegável é que Subterrâneos é uma grande obra literária. O marxismo ortodoxo pode estar obsoleto, mas Jorge Amado continua relevante.
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