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Estética - A rejeição do subjetivismo radical

  • Foto do escritor: Luiz Felipe Panelli
    Luiz Felipe Panelli
  • 31 de dez. de 2020
  • 7 min de leitura

Atualizado: 12 de nov. de 2021

Finalizando o temível ano de 2020, pensei em escrever uma retrospectiva das minhas leituras. Afinal, mesmo diante de tanta angústia, há espaço para o pensamento e para a reflexão.


Concluí, porém, que era melhor tratar de um tema que, creio (talvez ingenuamente), pode trazer uma verdadeira redenção para tempos horrendos: a estética. Como já afirmei, sou, por defeito de personalidade, um otimista. Me recuso a acreditar que estamos condenados a viver em meio à feiura e imundice. Acredito que o espírito humano está naturalmente direcionado para a beleza e para o bem e que esta busca nos reserva a surpresa de uma redenção de nossas desgraças. Tratar de estética, neste fim de 2020, pode ser bom para nos reconectar aos propósitos maiores da vida.


Não tratarei, neste texto, de nenhum livro em particular. Em breve, pretendo escrever um texto sobre estética abordando dois livros que considero especialmente relevantes. Por ora, aproveito o clima de fim de ano para fazer um texto um pouco mais intimista.


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Em algum ponto da história recente, aceitamos o que considero ser uma armadilha, que é o relativismo absoluto. Em um primeiro momento, relativizar juízos é vantajoso; nos permite ver além das perspectivas que nos foram impostas por sistemas de pensamento com os quais, muitas vezes, temos legítimas discordâncias. Relativizar juízos é o primeiro passo para uma saudável contestação e, da tensão entre ordem estabelecida e ordem proposta, surge a interessante síntese do progresso.


O problema é que, naquele fatídico ponto da história - pretendo abordar isto nos textos posteriores - houve uma guinada muito radical para o relativismo, de tal modo que a ideia de formação de conceitos como categoria capaz de definir algo de forma rígida se rompeu. O resultado é que todas as construções teóricas se tornaram muito frágeis, descartáveis, inúteis ou, até pior, impossíveis.


Vê-se isto com clareza no campo da religião: de um lado, o domínio que a narrativa religiosa tinha sobre o mundo foi quebrado pelo advento de novas formas de entendê-lo; de outro lado, a perda do sentido religioso do mundo fez com que embarcássemos em um inferno niilista. Pior: as religiões mais tradicionais passaram a viver uma crise entre a adaptação ao mundo moderno ou apego às suas tradições. A crise ainda está em aberto e certamente ainda estará quando deixarmos este mundo; o seu final será narrado por historiadores que ainda não nasceram.


Sandro Botticelli. O nascimento de Vênus (1483)

Especificamente, no campo da estética, a crise se deu entre objetivismo e subjetivismo. A noção clássica de que a beleza estava no objeto foi rompida na modernidade, que passou a questionar a beleza como propriedade do objeto e, trazendo o problema para o juízo humano, pôs a beleza no olho (melhor dizendo, no juízo) do observador.


Em que pese a minha insistência na propriedade objetiva da beleza (trataremos disto em outros escritos), o fato é que a contestação de uma forma estabelecida (clássica) de interpretação do mundo faz parte da Modernidade e, em si, não traz nada de ruim; pelo contrário, gera um saudável debate. Porém, tal e qual ocorreu em outras áreas, o vilão não foi a modernidade, mas a pós-modernidade, que trouxe à tona o derretimento dos conceitos. Isto, suspeito - e digo “suspeito” porque é uma questão que, para mim, está sob investigação - foi a causa da crise estética do último século.


Radicalizemos, por um instante, a crítica kantiana à estética clássica e passemos a entender que tudo, absolutamente tudo, é um juízo de valor subjetivo. O resultado é que uma obra que outrora foi julgada como sendo dotada de grande valor passa a ser equiparada a algo tolo ou até ruim. Um quadro majestoso passa a ter o mesmo valor de um urinol (sim, a referência a um urinol é bem proposital).

Bartolomé Esteban Murillo - A Imaculada Conceição dos Veneráveis (1678) Melhor que um urinol, não?

Se em outras áreas da filosofia a impossibilidade de formação de conceito seria desastrosa - imaginem um lógico dizendo algo como “silogismo é coisa da sua cabeça; qualquer conclusão é válida” -, em estética, acredito, ela foi fatal. As obras de arte são uma criação inteiramente humana: foram feitas por e para humanos, com a finalidade de refletir, de alguma forma, a realidade e nosso entendimento sobre o universo (uso o termo “entendimento” de maneira muito diferente do que seria usado por cientistas, é claro). Se não há como julgá-las, se não há como refletirmos objetivamente sobre elas, por que elas existem?


É claro que, cumpre repetir, a quebra de paradigmas é sempre necessária e deu surgimento a coisas relevantes, como a arte abstrata, que tem muita coisa interessante. O Século XX, de certa forma, se beneficiou da quebra de paradigmas por meio da experimentação. A última coisa que eu quero é defender um conceito estanque de beleza, de forma a podar a experimentação e os avanços que são essenciais para o desenvolvimento estético.


Ocorre que, mesmo para abraçar o novo, é necessário ter conceito. Em um ambiente de efervescência criativa, muita coisa imprestável fatalmente será feita; teremos que ter juízo para julgá-las e fazer uma distinção entre o descartável e o que tem valor. Portanto, mesmo se formos radicalmente abertos à novidade, à quebra de paradigmas, à experimentação, temos que formar juízos. Temos que julgar. Diferir. Dizer “sim” e “não” para diferentes obras. Temos que admitir que nem tudo tem o mesmo valor.


É necessário rejeitarmos o subjetivismo radical. Somos humanos, somos capazes de nos comunicar uns com os outros e de formar conceitos, de aprender, de evoluir. Podemos e devemos ser críticos.


Diego Velázquez - Cristo crucificado (1632)

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E se a opção por uma estética ruim for proposital? Seja pela própria mídia, seja pela influência deletéria dos tempos ou talvez por interesses menos elevados, como chamar atenção chocando as pessoas, ou simplesmente vender mais um determinado produto...e se optarmos pela rejeição consciente à beleza?


Neste caso, quando há propósito, temos que nos manter firmes na defesa de uma estética que sirva para elevar e salvar o homem, mas também temos que reconhecer a liberdade que permite uma opção deliberada pela feiúra, seja lá com qual propósito. A exceção, creio, seria a arquitetura, que nos força a ver os horrores que às vezes surgem na mente de alguns arquitetos. Aí há uma violência, pois somos forçados a partilhar do horror que, nas outras formas de arte, fica restrito ao círculo dos que voluntariamente aderiram àquela estética particular.


Uma das coisas que me intriga é o fato de que muitas pessoas que têm acesso a uma quantidade infinita de informações e possibilidades por meio da internet optam por chafurdar em um universo esteticamente tosco. Quem nunca pegou um Uber e se deparou com o motorista ouvindo axé ou funk? Por que ele se submete a esta tortura quando pode, com um simples gesto, passar o dia ouvindo as melhores composições já feitas? Quem opta por ouvir um pagode quando pode ouvir Beethoven?


Façamos uma digressão: eu não sou músico, artista, crítico, ou algo do gênero. Sou apenas alguém que gosta de refletir sobre alguns temas por meio de leituras. Rejeito, com ênfase, o relativismo absoluto. Dizer que “funk e Beethoven têm o mesmo valor” é algo que reputo como errado. Não me intimido com “carteiradas” de supostos especialistas em música que afirmam o contrário; aliás, acredito que argumento de autoridade é algo que deve ser ridicularizado. Posso (e você pode também) usar do juízo para julgar criações humanas.


Voltemos. Por que o motorista do Uber se submete à tortura da música pop? Por que uma pessoa liga a televisão em alto volume e vê um programa de auditório? A internet não nos livrou dos custos de acesso ao conteúdo? Por que continuamos imersos no lixo? Por que uma das grandes promessas do Século XX, a televisão, foi reduzida a uma programação lamentável?


No começo da publicidade na televisão, os cigarros dançavam

O Século XX foi o século da publicidade, esta maldição (pós) moderna. A publicidade sempre segue o Zeitgeist, de forma covarde e subserviente. Quem não se lembra dos comerciais de cerveja nacional do começo dos anos de 2000, em que sempre apareciam mulheres seminuas em uma praia, até que hoje, com a ascensão da paranoia identitária e politicamente correta, isto se tornou reprovável, forçando-os a adotar novas estéticas publicitárias? O que mudou no produto? A cerveja nacional continua sendo um suco de milho bem aguado, independentemente do fato dos publicitários terem sido “conscientizados sobre o machismo estrutural” (preciso passar um álcool na mão depois de ter escrito esta frase).


Em tese, o próprio Século XX oferece o antídoto para a chaga da televisão: a internet, em que todos podem selecionar o conteúdo, criar, interagir, enfim. O que ocorreu? A internet foi tomada por horrendas redes sociais, que servem para pessoas mostrarem supostas virtudes aos “amigos”, por meio da promoção de valores da moda. Todo mundo virou um publicitário. A popularização cultural, que nos livraria dos horrores da televisão e do rádio, não vieram. Por quê? Por que o motorista do Uber insiste em ouvir axé se pode ouvir Mozart? (Não, eu não sou especialista em música, mas não preciso ser especialista para distinguir uma obra clássica e de alto valor de...axé).

Eugène Delacroix - A liberdade guiando o povo (1830). O quadro é famoso. A arte já foi ligada ao imaginário cívico e religioso

Evidentemente, não tenho as respostas, mas tenho algumas pistas. O que tenho a dizer sobre estética, neste momento, é o seguinte:


  • A subjetividade extremada, que nega a possibilidade da formação de juízos, é equivocada.

Não tenho como ser mais enfático sobre este ponto. Nós somos animais sociais e, como tais, podemos construir juízos coletivos sobre o que é bom e ruim. Nós fazemos isto o tempo todo. Quando escolhemos dar o prêmio Nobel da física ao cientista X ao invés do cientista Y, quando escolhemos tipificar criminalmente a conduta Z ao invés da B, quando votamos em um partido político ao invés de outro, enfim...fazemos juízos o tempo todo.


Temos que ser capazes de firmar conceitos. De dizer o que é arte e o que não é, de afirmar o que tem valor e o que não tem. É claro que isto é uma tarefa que deve ser feita através de muita discussão. Em uma sociedade democrática, o juízo final sobre valor estético será o da história, e não o da burocracia. Mas haverá juízo.


  • Devemos persistir na busca da beleza como elemento vital para nossa salvação

Há os que optam deliberadamente pela feiúra, como forma de manifestar sua ideologia através da estética. O Século XX nos legou horrores estéticos, especialmente arquitetônicos. Não devemos nos submeter à ditadura do horrendo. Fomos capazes de construir beleza e ainda somos. Em um mundo marcadamente feio e radicalmente pós-moderno, lutar por beleza e defendê-la como necessária é uma atitude radical.


Vale a pena. Não devemos desistir da busca por beleza.


  • Temos que insistir em uma educação estética que defenda os valores da beleza.

Tenho um palpite do porquê do motorista do Uber ouvir axé ao invés de uma música erudita: ele ainda não criou um juízo estético que o permita perceber que está consumindo lixo. Do contrário, não o faria, salvo por algum irresistível impulso masoquista. Temos que insistir na possibilidade de uma educação que construa os juízos estéticos.


Aqui, é claro, teremos uma oposição poderosa: tanto os educadores do Século XX quanto os especialistas em estética costumam rejeitar a possibilidade da formação de conceitos e a superioridade de um juízo estético sobre os demais. Os educadores e os estetas são, afinal, os mais radicais subjetivistas.


Quem disse que não podemos lutar contra eles?


***


Desejo a todos um excelente 2021. Volto com a crítica de algumas obras nos próximos textos.


 
 
 

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