Espetáculo em arte e política
- Luiz Felipe Panelli
- 4 de abr. de 2019
- 6 min de leitura

Qualquer pessoa que teve a oportunidade de acompanhar os procedimentos de deliberação democrática deve ter manifestado, em algum momento, certa insatisfação. Ritos protocolares, discussões vazias, respostas evasivas. Acima de tudo, um perene sentimento de demora, de falta de objetividade e uma frustração pela incapacidade de resolver os problemas que deveriam ser enfrentados.
A impressão é correta, e, creio, vale para todos os países civilizados. No Brasil, como sempre, as coisas são piores; os problemas típicos da democracia contemporânea se somam à corrupção, clientelismo, populismo, ignorância e outros males, tornando nossa rotina democrática algo verdadeiramente assustador, capaz de causar ojeriza em qualquer pessoa que tenha apreço pelo debate racional. Porém, em que pese o fato de haver uma verdadeira e justa frustração - que, no limite, pode ser algo bastante perigoso - proponho deixarmos de lado o olhar do espectador racional (o que discute em moldes platônicos, o assim dizer) e usarmos a observação de um espectador atento em um espetáculo teatral.
O termo “espetáculo” é definido em alguns dicionários de etimologia como advindo de spectaculum e em outros de speculum; ambos têm o significado de “olhar, visualizar”. O espetáculo, é, então, algo que se apreende com os sentidos, uma determinada ação humana feita para ser percebida pelos demais. O espetáculo, portanto, pressupõe a existência de uma plateia e existe para essa platéia. Sem um observador que, a priori, está de fora da ação, não há espetáculo. Nossa vida privada é marcada justamente por não ter espectadores; a crise entre o público e o privado trazida pela proliferação das redes sociais ocorre porque estas plataformas permitem pôr uma platéia onde antes não havia, tornando toda a nossa vida espetaculosa (ou espetacular, melhor dizendo).
O rito democrático, de certa forma, é espetacular porque pressupõe a platéia e um ato para a platéia. E, assim como no espetáculo teatral, pressupõe a existência de bastidores inacessíveis ao público. Ninguém sai frustrado de uma peça de teatro porque não teve acesso às conversas entre o diretor e os atores antes da peça começar; entende-se que aquilo não faz parte do espetáculo. No rito democrático, sabemos, conversas de bastidores e negociações - lícitas e ilícitas - têm um peso enorme, maior do que o dos debates institucionalizados.
Imaginemos o Congresso Nacional às vésperas de uma votação importante - por exemplo, uma reforma da previdência. Há enorme pressão do governo para que a votação seja favorável e de entidades sindicais para que seja desfavorável; a guerra retórica está a todo o vapor. Da Tribuna da Câmara dos Deputados, ouve-se, discursos inflamados. Quantos deputados, dos quinhentos e treze, foram à Tribuna? Quantos ouviram o orador que lá estava? É possível ouvir e refletir no meio de um ambiente barulhento e tenso?
Sabemos as respostas. É evidente que só uma ínfima minoria ocupou a tribuna, que o que foi dito não influenciou coisa alguma e que há diálogos importantíssimos nos bastidores. Não falo, necessariamente, de atos ilícitos (pagamento de propina para obter votos - prática infelizmente corriqueira), mas de atos que, apesar de legais, não podem vir ao conhecimento do público, sob pena de não funcionarem. Por exemplo, o líder do governo que combina com um grupo de deputados indecisos que eles votarão a favor da reforma da previdência e, em troca, o governo não impedirá a aprovação de um projeto de lei que reduz a jornada de trabalho para algumas categorias. Ou o líder da oposição que pediu para que alguns deputados amenizassem o discurso contra o projeto em prol de conseguir melhores negociações com o governo no ano que vem, quando será discutido o valor do salário mínimo. Esse tipo de conversa é para poucos. Não à toa que se divide os deputados em alto clero e baixo clero - e isto é assim no mundo todo.
Fica fácil de perceber, então, que o debate parlamentar institucionalizado - discursos inflamados da tribuna, apartes, manifestações em frente ao palácio do Congresso - é apenas uma pequena parte do jogo político. O espetáculo existe, mas - como no espetáculo teatral - nem tudo é acessível ao público. Há um jogo de bastidores, que ninguém desconhece. Por que, então, legitimamos o ritual democrático, se sabemos que ele não tem a transparência que diz ter?
Damos legitimidade ao sistema democrático quando participamos ativamente do seu rito. O voto é uma das maiores formas de legitimar o sistema. Pode-se argumentar que no Brasil o voto é obrigatório e, apesar da punição para os que não votam ser pífia, é menos trabalhoso votar do que se abster e ter que regularizar sua situação eleitoral posteriormente. Porém, o voto pode ser facilmente anulado. Ademais, não é só o voto que dá a legitimidade democrática que o sistema requer. Quando discutimos a sério argumentos lançados da tribuna de uma Casa Legislativa, ou quando damos importância a uma audiência judicial de instrução que, no caso específico, acabará por não ter influência na sentença, estamos legitimando o sistema.
Pensemos agora num ritual religioso - digamos, uma missa católica. Para os que têm aquela fé, a missa é um evento importante, que tem como um de seus objetivos o ato de testemunhar e participar de um milagre - a transubstanciação de pão e vinho no Corpo e Sangue de Cristo. Os que não têm fé, porém, podem observar a missa apenas como um ritual, analisando-a do mesmo modo que faz um antropólogo (um observador externo neutro) ou tomando uma atitude hipócrita e fingindo participar da missa, sem acreditar no milagre da Transubstanciação e nas suas decorrências lógicas (existência de Deus, benignidade do Divino, etc…); neste último caso, pode-se pensar na pessoa que, por alguma obrigação social, finge ter fé - como ocorre frequentemente em épocas de campanha eleitoral.
Em suma, a imensa maioria da população legitima o sistema democrático - e isso inclui os que se dizem “críticos”, “conscientes”, etc. Talvez essa legitimação se dê porque o rito democrático - o teatro da democracia - seja a forma válida de interação social em uma sociedade complexa e institucionalizada, papel exercido em parte pelo teatro grego na Antiguidade clássica e pela religião na Idade Média. O “teatro democrático” seria a nossa forma de interação na ágora e, ao participarmos dele, legitimamos a ideia de que nós, em nossa pequenez, temos voz ativa e podemos forjar nosso destino. Ironicamente, na tragédia grega, o destino do herói acaba sendo traçado independentemente de sua vontade, apesar de que suas ações o definem. Nós somos o que somos porque fazemos o que fazemos, a saber, somos homens do Século XXI porque participamos dos rituais democráticos que definem a sociedade do Século XXI.
Surge, porém, uma constatação um pouco deprimente: se o “teatro da democracia” é formado de uma retórica tosca que acoberta relações reais de poder, não estamos concretizando a tese marxista de que há uma superestrutura feita para esconder a base real das relações sociais? Todo o aparato social - instituições democráticas, direito, religião, trabalho, formas de relacionamento, família, capital, etc - são parte de uma máscara hipócrita, que aguarda uma revolução proletária? Bem, como não houve a concretização da teoria marxista - como não houve uma revolta proletária, mas apenas a instauração de regimes autoritários com base na retórica socialista, e como o capitalismo não entrou em crise por suas próprias contradições - pelo contrário, sucedeu em criar riqueza para a maioria - penso que a teoria marxista, em si, é incorreta. Isto não significa, porém, que devemos aceitar de forma passiva o deprimente “teatro da democracia”.
Uma solução possível - ou ao menos um ponto de partida possível - seria pensarmos em termos pós-marxistas. Não me refiro àquela corrente denominada “pós-marxista” que se firmou a partir da segunda metade do Século XX na crítica europeia. Penso que o pós-marxismo, no caso, pode ser uma análise da política representativa contratualista partindo de dois pressupostos teóricos, quais sejam, (I) a superação do modelo democrático representativo de tripartição de poderes e (II) a inadequação das teses marxistas para explicar os fenômenos sociais, bem como a necessidade de denunciar a retórica marxista como legitimadora do autoritarismo. Partindo disto, poderemos fazer uma releitura da filosofia política dos Séculos XVI a XIX, a fim de repensar de forma propositiva um modelo democrático para o Século XXI, sem cair na utopia da representatividade ou no mito da democracia direta (que teria os mesmos problemas - o mesmo jogo de luz e sombra - da atual democracia representativa).
Fugir, no entanto, dos cânones da democracia representativa enquanto se evita a tosca retórica marxista e os perigos da democracia direta não é tarefa fácil. A institucionalização da política trouxe avanços civilizatórios inegáveis. O sistema de Justiça, apesar de também funcionar como espetáculo no sentido aqui descrito, é um avanço civilizatório inegável, que deve ser preservado e aprimorado. O futuro, porém, aponta para uma superação dos modelos atuais, que pode começar com especulações teóricas cujo maior compromisso seja manter os avanços civilizatórios.
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