"Cidadania no Brasil", de Carvalho e "Autocratic Legalism", de Scheppele: pontos tragicamente comuns
- Luiz Felipe Panelli
- 21 de jun. de 2019
- 7 min de leitura
Quem quer que tenha se enveredado no caminho da discussão política séria - excluindo-se, portanto, o horror barulhento e imbecilizado de redes sociais e assembleias estudantis - já deve ter parado para se perguntar qual é exatamente a natureza desta atividade. Afinal, o que é isso - a política - e para que ela serve? Se uma pessoa estiver disposta a dar respostas sinceras, as conclusões são deprimentes.
A democracia é uma farsa? A história se move com base em um motor diferente? Estamos caminhando para uma ditadura da maioria (burra)?
A democracia brasileira sempre deu sinais de ser farsesca, mesmo nos melhores momentos. Candidatos bizarros que mudam o discurso conforme o momento político, partidos políticos que servem como mecanismo de venda de tempo de televisão, mecanismos antiliberais que distorcem a representatividade...tudo dando a impressão de que o que temos é uma disputa de grupos políticos pelo poder, com o objetivo de usá-lo em seu próprio benefício. O povo é ora um espectador passivo, ora uma útil massa de manobra. Há, portanto, um déficit de cidadania.
Em Cidadania no Brasil - o longo caminho, José Murilo de Carvalho traça um perfil da cidadania brasileira durante toda a sofrida história do país. A tese é simples: há um déficit de cidadania imenso, cabendo ao povo um papel absolutamente secundário na decisão dos rumos políticos do país, mas há também uma melhora gradual (com eventuais retrocessos), fruto de uma constante luta e aperfeiçoamento. O cenário atual está muito longe de ser bom, mas é bem melhor do que era. Há um caminho árduo pela frente, mas estamos lutando o bom combate.

Cidadania contém, porém, um paradoxo: ao analisar o passado (de forma muito didática e eficiente), o autor dá a impressão de que há uma linha histórica de superação do grave déficit democrático brasileiro e que, mesmo com retrocessos eventuais, o avanço é quase que inevitável. Tal conclusão não é explícita, mas permeia o fim do livro. O problema (ou, melhor dizendo, a virtude) desta conclusão implícita é que o leitor deve se perguntar se faz sentido pensarmos no conceito de cidadania nos tempos atuais.
Vejamos: um político claramente oportunista e demagogo faz um discurso tolo e genérico sobre mais saúde e educação. Todos sabem, porém, que ele se elege graças ao seu curral eleitoral. Outro fala em direito dos trabalhadores - conceito que também é vago. Um terceiro fala em salvar o Brasil das garras do sistema financeiro internacional, que ele claramente não faz ideia do que é. Um quarto fica anos num órgão legislativo propondo projetos de leis inúteis, que visam apenas homenagear o seu círculo de influência. Tudo parece velho, mofado. Surgem movimentos de renovação da política, que pedem mudanças e lançam candidatos que se dizem “ousados”. Passeatas são organizadas. Os “jovens” saem às ruas clamando por seus “direitos”. É uma nova era, que tem como protagonista o dantesco “jovem conscientizado”. Não tarda para que os igualmente dantescos publicitários aproveitem a figura do jovem politizado e da conscientização da política para explorar comercialmente o novo contexto. Doravante, todo personagem de televisão será uma caricatura do jovem conscientizado, que se choca com velhas estruturas sociais e que a todos redime com seus elevados ideais.
*
Permita-me o leitor uma digressão: não estou aqui a criticar a renovação na política ou o surgimento de movimentos militantes (seria irônico, no mínimo, dado o meu envolvimento com o MBL). Tampouco contesto a ideia trazida em Cidadania de que as coisas estão, de fato, melhorando. O fazendão escravista do Século XIX e a República oligárquica do Século XX deram lugar a um arranjo relativamente funcional. De todo o modo, não deixo de notar que o poder político tem um cinismo cujo odor se fareja de longe no discurso em prol de “direitos”. Um observador arguto vê facilmente os grupos organizados de poder que estão por trás de cada discurso.
Se é preciso ter fé na política, também é preciso ser realista e entender que política não é questão de fé. De certo modo, tudo se reduz, sim, a grupos disputando o poder.
*
Cidadania nos joga a outro texto, de lavra do professor de Princeton, Kim Lane Scheppele, que trata de um legalismo autocrático. No ensaio, aparece o termo “constitutional malice”, que denota o uso de instituições democráticas para minar o próprio sistema democrático. Pode-se dizer que isso foi feito na década de 30 do Século XX, mas esperava-se que os mecanismos implementados desde então - em especial o fortalecimento da jurisdição constitucional - fossem mais eficientes.
O método é conhecido: um grupo chega ao poder pela via democrática e, uma vez instalado nas entranhas do Estado, passa a perverter o sistema constitucional para remover freios e contrapesos e se perpetuar no poder. Alguns críticos do PT dizem que era exatamente o que o partido pretendia fazer. Há também quem diga (e Scheppele cita esse exemplo) que esse foi o mecanismo para instaurar a horrenda ditadura venezuelana, que criou um inferno povoado de famintos, mas deve-se considerar que esta ditadura só se mantém no poder por conta do apoio das Forças Armadas. Outros dizem (e talvez esse seja o alvo de Scheppele) que Trump é uma espécie de novo autocrata.

Scheppele traz a questão de um constitucionalismo democrático que, em uma visão simples, impediria uma reforma constitucional - mesmo pela via constitucional - para abolir eleições periódicas, mas em uma forma mais sofisticada, impediria que fatores democráticos de crítica e acesso ao poder (partidos, imprensa, judiciário, eleições, etc…) fossem solapados por novos autocratas.
Reflitamos sobre isso por um momento: uma das críticas tradicionalmente feitas à democracia brasileira é a concentração de poder em certos grupos, que têm promiscuidade com mídia, judiciário e outras instituições. Pense-se, por exemplo, em alguns Estados com menor desenvolvimento, em que famílias poderosas se instauraram em todo o aparato estatal (inclusive Judiciário e Ministério Público) e dominam a mídia - situação ainda comum no Século XXI. Em Cidadania, é narrada a perversão de mecanismos supostamente republicanos para benefício de grupos influentes de poder, formando os infames currais eleitorais. Eleições brasileiras, até um passado próximo, eram um jogo de cartas marcadas.
A quem servia, portanto, a democracia brasileira? Aos donos do poder. Cidadania entende que esta é uma realidade que se muda paulatinamente, com luta constante. Scheppele teme que a constância da prática democrática, que gera desgaste popular, acabe servindo aos novos donos do poder - os “autocratas legalistas”.
Scheppele cunha o termo “majoritarianismo”. O neologismo significa um governo da maioria eventual, sem freios constitucionais, supostamente protegido pelo manto do sistema democrático. Qualquer eleição serve para dar ares de legitimidade democrática a um novo governo, mesmo que este novo governo não queria mais eleições livres. O “majoritarianismo” leva ao “iliberalismo”. Por contraste, quando as instituições funcionam de maneira correta - e aqui a ênfase vai para a jurisdição constitucional - a tensão entre democracia (maioria) e constitucionalismo (minoria) se resolve de forma politicamente liberal, gerando uma solução que, apesar de tensa, privilegia o sistema democrático, ao invés de desgastá-lo.
*
Scheppele afirma que, antes do aparente triunfo da democracia liberal com a queda do muro de Berlim, o bloco socialista, sem meias palavras, defendia uma “democracia socialista”, que era comandado por um partido de vanguarda. Sempre agindo em nome do “povo” - conceito vago - o partido promovia violações massivas aos direitos humanos e atacava a retórica constitucionalista. Limitar o poder estatal, afinal, seria limitar a “vontade do povo”. Eis o pecado imperdoável, consistente em duvidar do poder redentor do ente metafísico “povo” e de seus ungidos, os políticos.
Já em Cidadania, José Murilo de Carvalho não vê a retórica constitucionalista como problema; sempre se falou em nome de elevados ideais, mesmo quando se estava a propagar o coronelismo puro e simples. O discurso constitucionalista, aliás, servia perfeitamente à elite política autocrática, que sempre dava ao seu domínio ares de legalidade. A hipocrisia gritante que marca o contraste entre o coronelismo e o discurso republicano dos seus líderes seria percebida, no texto de Scheppele, na prática política dos novos oligarcas do primeiro mundo, que formalmente não abandonam o discurso constitucionalista. O “legalismo autocrático” se serve da retórica constitucionalista para fazer potenciais críticos acreditarem que estamos dentro da seara do debate de ideias comuns, em que todos têm um compromisso básico com o legado liberal. A prática, entretanto, passa longe, muito longe de tal legado.
Um dos alvos preferidos de Scheppele é o “legalismo”. Para Scheppele, o legalismo - a ideia de que o governo pode tomar determinada ação porque a lei o autoriza - é o escudo dos novos autocratas do primeiro mundo, que serve a um duplo propósito: no campo retórico, dá ao governante aspecto de legitimidade (nesse ponto, lembra as práticas brasileiras descritas em Cidadania). Já no campo das ideias, corrói o sentido do constitucionalismo, que pressupõe um mecanismo jurídico e político intrincado e complexo a fim de garantir que não haja concentração de poder - e, consequentemente, não haja abuso.

O “iliberalismo” é uma espécie de monstro de Frankenstein. O monstro, no caso, era formado por um conjunto de partes de corpos humanos que, em si, eram normais, mas o resultado do conjunto era abominável. No “iliberalismo”, faz-se enxertos de diferentes distorções representativas de países democráticos e o que resulta é algo irreconhecível, grotesco.
*
Nova digressão: a Constituição Federal de 1988 traz uma série de distorções representativas. A Câmara dos Deputados, que deveria ter bancadas proporcionais à população dos Estados, tem limitações mínimas e máximas no número de representantes dos Estados, o que é típico de países unicamerais. Tais limitações são perfeitamente justificáveis no unicameralismo, mas qual é o sentido de existirem no bicameralismo? E o que dizer do voto obrigatório? Da filiação partidária obrigatória? Do horário eleitoral “gratuito”? Da unicidade sindical? Do Distrito Federal como ente federativo (o que contraria a própria ideia de um distrito...digamos...federal)?
*
Cidadania é um livro cautelosamente otimista. O ensaio de Scheppele é de um pessimismo engajado: reconhece a periculosidade da situação, mas conclama à ação. Ambos têm um importante ponto em comum, que é reconhecer no direito um instrumento imprescindível para uma democracia plenamente funcional. Como diz Scheppele, “o direito é muito importante para ficar relegado aos juristas”.
Com isto estamos todos de pleno acordo.
Comments