Ackerman e Vargas Llosa - duas análises da sociedade liberal
- Luiz Felipe Panelli
- 6 de ago. de 2019
- 8 min de leitura
“Democracia é quando eu mando em você, ditadura é quando você manda em mim”.
Millor Fernandes
Um dos problemas perenes de empreender um estudo mais profundo da política é a questão da legitimação. Se alguém manda e alguém obedece, é preciso que haja algo que justifique esta relação de dominação. O algo pode ser religioso, carismático, tradicional, força ou outro fator que explique a capacidade de mando. O fato é que a posição de poder precisa ser justificada.
Não se surpreenda o leitor ao ver “força” ao lado dos outros fatores de legitimação; é até mais racional submeter-se ao mais forte, tal e qual se faz em uma ditadura (“odeio quem tem o poder de mando, mas a ele me submeto porque temo as terríveis consequências da insubordinação”) do que aceitar uma autoridade por conta de carisma ou tradição - como às vezes é feito em regimes que têm plenas garantias democráticas. Afirmei que a posição de poder precisa ser justificada, mas não disse que a justificativa precisa ser racional e exercida através de uma retórica que possibilite o livre convencimento; a vítima do ladrão que, armado, a ordena que entregue todo o seu dinheiro, está mais do que convencida a fazê-lo (e com razão).
Há, porém, um tipo de sociedade (real, e não utópica), que se diz superior às demais porque seus cidadãos gozam de um elevado nível de liberdade, que só pode ser restringido (e na restrição inclui-se a submissão a quem tem poder político) se houver uma persuasão racional, que se dá através de uma argumentação neutra. Esta sociedade tem todos os problemas dos demais modelos sociais, em especial a escassez de recursos e a impossibilidade de agradar a todos. Nela, porém, o poder é exercido de forma limitada, moderada e legítima.
A limitação dá-se pela lei; a moderação dá-se por outros órgãos de poder que atuam de forma concorrente e a legitimidade dá-se por um processo democrático previamente definido. O ponto principal, porém, é que esta sociedade faz com que o ocupante de uma posição de poder seja obrigado a dar uma justificativa racional para a sua posição - para o seu mando, melhor dizendo. Nada é dado gratuitamente e ninguém é inerentemente superior aos demais. Quem tem poder deve apresentar uma justificativa neutra e racional.
A esta sociedade, de moderação, de lei, de legitimidade e de justificação racional, dá-se o nome de “sociedade liberal”.
Na obra "Social justice in the liberal state", o constitucionalista americano Bruce Ackerman, da Universidade de Yale, propõe explicar o dilema da distribuição de recursos (sempre escassos) em uma sociedade liberal. Como, afinal, será feita “justiça social” em uma sociedade em que não há um Estado centralizador e autoritário, que possa realocar recursos à força? Ackerman admite que não há espaço para um igualitarismo pleno, porque as necessidades e talentos das pessoas são diferentes, mas insiste na questão da justificação como necessária para entender o tipo de desigualdade tolerável.
Não é exatamente um empreendimento novo em filosofia; basta lembrar que o contemporâneo de Ackerman, John Rawls, empreendeu esforço igual, com bons resultados. Ackerman, porém, usa um novo modelo de argumentação, mais pragmático: o leitor deve imaginar um grupo de pessoas em uma nave espacial, prestes a chegar em um planeta novo, em que uma substância especial e limitada possa ser usada para suprir todas as necessidades das pessoas. O problema é que este recurso mágico é, como dito, limitado, ou seja, ele pode se transformar em qualquer coisa, mas ninguém o terá em quantidade suficiente. Daí é necessário dialogar para ver quem terá as maiores porções. O diálogo é coordenado pelo comandante da nave, que impõe regras de neutralidade e justificativa racional para garantir um debate típico de sociedades liberais.
Este artifício de narrativa usado por Ackerman torna a leitura tormentosa. O leitor é obrigado a lidar com uma narrativa mal construída de uma sociedade que funciona em bases utópicas, capitaneada por uma série de personagens estereotipados e unidimensionais, que dialogam sob constante intervenção de um comandante que tenta ser “neutro” a todo momento. Some-se a isto as constantes intervenções explicativas do próprio Ackerman, que funciona como um narrador onisciente que não está plenamente convencido do seu papel no imbróglio argumentativo que criou e o resultado é uma leitura entediante, que desafia a atenção de qualquer pessoa interessada.
Deixemos de lado, porém, a (des)agradabilidade da leitura. Obras de ciências humanas, afinal, não têm como objetivo o primor estético típico de romances e poemas - pelo menos não a priori. De boa vontade, imaginemos que Ackerman escolheu o pior meio para sustentar sua tese e analisemos os seus argumentos.
O ponto principal é que a “sociedade liberal” tem como premissa a justificativa do poder (político, econômico, etc…) e é, nesse sentido, avessa ao autoritarismo. O problema, creio, não está na tese nem na conclusão, mas na premissa. Existe uma “sociedade liberal”? É claro que a Inglaterra é mais “liberal” (politicamente) do que uma sociedade patriarcal e corrupta como o Brasil (em especial se pegarmos o Brasil do início do Século XX ou fim do Século XIX), mas esta obviedade não pode fazer com que deixemos de indagar se mesmo uma sociedade que é modelo do liberalismo moderno funciona com bases plenamente racionais.
Ackerman entende que esta capacidade de ter um diálogo racional que justifique o poder é a base do liberalismo. Seria, porém, a sociedade humana - qualquer que seja ela - movida por meio de bases puramente racionais? Não pretendo usar como premissa argumentativa o (neo)marxismo, que defende que tudo é político e que não há ato humano que não se inclua na dinâmica da luta de classes, até porque esta premissa também é “ultrarracional” - ignora a contingência e pressupõe que tudo está no domínio da política, exatamente como faz Ackerman e sua hipotética nave liberal.
Nem tudo, quero crer, é político. A ação humana não está inteiramente inserida em um contexto político qualquer, seja o de luta de classes marxista ou o de justificativa racional que Ackerman tentou expor. Isto não significa, é claro, que a existência humana neste dilapidado planeta seja caótica; há história e ela pode ser analisada racionalmente. O que refuto é que qualquer ato humano esteja inserido em uma equação política específica.
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Este site tem certa obsessão com o tema do totalitarismo, conforme provam os textos anteriores. Peço desculpas, mas devo voltar ao tema. É uma monomania.
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O sempre brilhante Mário Vargas Llosa, que consegue ser genial em ficção e não-ficção, publicou recentemente “O chamado da Tribo”. Trata-se de um livro de ensaios sobre seus autores liberais favoritos que, lidos em conjunto, funcionam como uma defesa da sociedade liberal. Llosa defende o liberalismo político e econômico, o que é surpreendente quando consideramos o contexto em que floresceu como escritor, que foi o da nova literatura latino-americana, impregnado do esquerdismo tosco de inspiração cubana - cujos resultados são trágicos e conhecidos.
Llosa faz uma defesa do liberalismo de forma mais eficaz que Ackerman. É evidente que um escritor tão consagrado como Llosa escreve de maneira (infinitamente) mais agradável do que um acadêmico como Ackerman, mas acredito que o sucesso de Llosa na defesa do liberalismo se dê, preponderantemente por outras razões. Llosa entende que a sociedade humana não é produto de um planejamento racional e acusa os planejadores de terem, sempre, uma tendência antidemocrática. Alguns dos autores analisados por Llosa em seus ensaios veem já na filosofia platônica um germe do autoritarismo (este tema é polêmico e, neste texto, prefiro evitá-lo). O planejamento central, a ideia de ter uma sociedade harmônica, seria, por si só, uma forma de totalitarismo justamente porque a sociedade humana não é ideal. Há contradições, há conflitos, há interesses e pressões que, de alguma forma, têm que conviver em relativa harmonia - isto é, não se pode descambar para uma guerra civil.

Os autores que Llosa analisa rejeitam, sistematicamente, um planejamento central nos moldes platônicos e admitem que há um grande espaço para o acaso na formação da sociedade humana. Mais do que tudo, é preciso ser cético, duvidar da capacidade humana de produzir utopias e lembrar que a busca de utopia geralmente descamba no inferno burocrático estatal (nesse ponto, Llosa se aproxima dos conservadores, a quem não cansa de criticar). O acaso é responsável, ao mesmo tempo, pela criação e pela mudança estrutural em setores importantes da sociedade. Que pensador do Século XIX preveria o advento das tecnologias do começo do Século XXI que mudaram a forma de organização da indústria, por exemplo? Ao mesmo tempo, o acaso gera decepção em quem confiava em um curso fixo e previsível da história.
Llosa, ao tratar de Isaiah Berlin, levanta a questão da falha no lema da Revolução Francesa, evento que teria supostamente rechaçado qualquer ordem política antiliberal. Liberdade, igualdade e fraternidade. Mas não é a liberdade que cria a desigualdade? E a tentativa de criar igualdade não suprime a liberdade? Este equilíbrio precário entre liberdade e igualdade que as sociedades liberais do Século XXI tentam equacionar não demonstra, justamente, uma incompatibilidade intrínseca entre os dois valores?
Esta questão do equilíbrio entre a igualdade e a liberdade, e da sua (in)compatibilidade é, talvez, uma das mais relevantes para o estudo do liberalismo político. A liberdade negativa, de afastar o Estado, e a liberdade positiva, de garantir uma justa distribuição de renda, gera uma tensão explosiva no seio das sociedades liberais, em que a crescente desigualdade é fonte de crítica dos seus detratores antiliberais (em especial socialistas). Este deveria ter sido o tema abordado por Ackerman que, em seu afã de explicar racionalmente a necessidade de justificativa para a divisão de recursos em uma sociedade liberal, passa ao largo do problema.
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Há uma discrepância muito grande na análise do liberalismo feita por Llosa em relação àquela feita por Ackerman. Como já comentei, espera-se que um escritor consagrado como Llosa escreva de forma mais interessante do que um acadêmico (mesmo que muito bem sucedido) como Ackerman, mas isso, por si só, não explica a discrepância.
Ao ler ambos os livros, sente-se que Llosa teve mais faro ao tratar do liberalismo. Selecionou os autores certos, fez as análises precisas, conseguiu construir uma ligação entre as diferentes obras resenhadas e chegou às conclusões mais coerentes. É como se Llosa, partindo de horizonte mais confuso do que o de Ackerman (devido à caótica influência da nova literatura latina e à sua vida atribulada, que teve inclusive incursões mal sucedidas na política partidária) tivesse conseguido selecionar melhor o material de análise e trabalhar de maneira mais coerente. Ackerman, com toda a tranquilidade de um acadêmico de Yale (estabilidade, dedicação integral, ambiente de plena liberdade crítica, bibliotecas riquíssimas, etc.) tergiversa entre escrever uma ficção e uma obra de ciências humanas em sentido estrito, e apenas fareja o alvo, sem avistá-lo e muito menos alvejá-lo. A tensão entre liberdade e igualdade (ao meu ver, o “alvo” da análise dos problemas da sociedade liberal) está descrita no livro de Ackerman, mas de maneira marginal, perdida no meio das elucubrações e diálogos de uma sociedade utópica fictícia e liberal.
É curioso que a vida de Llosa se assemelha a alguns dos resenhados por ele, no sentido de ter sido atribulada, cheia de incertezas e percalços. Por exemplo, Ortega y Gasset, um dos analisados por Llosa, passou longe de ser um acadêmico, apesar de ter tido uma notável produção intelectual. O mesmo se diga de Jean-François Revel. Outros autores analisados foram acadêmicos no sentido mais estrito do termo, mas demonstraram uma certa inquietude que é presente na obra de Llosa e parece incondizente com a figura de um burocrata acadêmico, hiperespecializado em uma determinado assunto.
Ackerman não pode ser comparado - justiça seja feita - a um burocrata acadêmico hiperespecializado. Sua obra é muito digna de nota e de análise. Tampouco podemos cair no canto da sereia do atual momento político e desqualificarmos o ensino formal e os acadêmicos. De novo, soluções simplistas não podem ser impostas, sob pena de cairmos nos erros dos histriônicos de redes sociais. A questão é que Ackerman foi reducionista em sua análise mecânica do funcionamento de uma sociedade liberal, que acaba eclipsando qualquer consideração boa que tenha sido feita (e certamente o seu livro tem várias considerações interessantes; a própria ideia de justificação do poder é algo a ser trabalhado). No final, Ackerman abraça a ideia de “ultrarracionalidade”, que liberais como Llosa e seus analisados - em especial Gasset e Revel - rejeitam.
A ideia de ceticismo em relação ao poder e de rejeição a um aparato burocrático estatal e a uma cultura excessivamente impositiva e à serviço de um projeto de poder - temas de que tratam a obra de Llosa - combinam bem com a ideia de necessidade de justificativa racional de Ackerman.
Em termos de leitura, porém, Llosa oferece um deleite enquanto Ackerman mostra aridez estética. Em uma obra de ciências humanas, estética importa? Julgue o leitor.
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