top of page

A tristeza no paraíso perdido: uma reflexão sobre o Brasil a partir de Carvalho e Viotti.

  • Foto do escritor: Luiz Felipe Panelli
    Luiz Felipe Panelli
  • 30 de mar. de 2020
  • 8 min de leitura

Uma obsessão da historiografia brasileira é a questão da Monarquia e sua transição à República. Talvez o fato exótico da existência de uma monarquia americana, ou a insistência em ver restos de hábitos monárquicos na sociedade atual, ou mesmo um saudosismo de um regime supostamente glorioso (o que só se justifica para quem tem uma visão muito tacanha da história) expliquem a monomania. Pode-se pensar, porém, que parte do interesse com a transição entre Monarquia e República se deva à decepção que temos com o atual estado das coisas. Vivemos, afinal, em um país que teima em ficar muito aquém do seu potencial, e em uma sociedade que é irritantemente mesquinha.


Entender a transição entre regimes poderia ajudar a explicar este marasmo brasileiro, em que nada parece que pode ou queira mudar. Em um canto triste do planeta, o acidente chamado “Brasil” continua sua existência sofrida, mas pacata, filtrando as ideias ocidentais para aplicá-las em uma versão desbotada, que acaba por garantir nossa continuidade. Trocamos de regime, mas não sanamos nossos males. Somos o que somos, e estamos fadados a sê-lo para sempre. Repetimos, assim, o destino do herói grego que é subjugado pelo destino, mas, ao contrário do dito herói, não demonstramos força e determinação; aceitamos docilmente o destino. Nossa pedra é leve, mas rolá-la ladeira acima acaba sendo uma tarefa tão fútil quanto a de Sísifo; cedo ou tarde, ela rola para baixo de novo. A civilização, entre nós, insiste em não florescer.


Foi com esta ideia de um doce e familiar derrotismo conformista que li “Da Monarquia à República”, de Emília Viotti da Costa. É obra de peso, sem dúvida, e a autora sucede em ter feito uma coletânea de textos que, unidos, traçam uma linha-mestra coesa, ao contrário do que ocorre com tantos livros de ensaios e estudos reunidos. A narrativa vai da Independência ao início da República de forma competente, expondo alguns fatores preponderantes na formação brasileira.

Sisyphus (1548–49), de Titian

Quem gosta do Brasil? Há quem goste do Brasil?


Certamente, não me refiro aos que saíram do país ansiando vida melhor e, ao se depararem com as durezas da vida no exterior (em especial o desprezo por alguns protocolos públicos de demonstração de afeto, tão em voga por aqui), voltaram correndo, declarando que a vida aqui é melhor do que em qualquer lugar do mundo. Me permito rememorar um caso de certa pessoa que se mudou para o Canadá em busca de vida melhor e ficou tão chocado com o fato de que lá nevava e - horror dos horrores - a neve não permitia o uso de chinelos, que voltou ao Brasil. Quando ousei perguntar-lhe se as condições climáticas não eram uma obviedade, foi-me dito que, além desta grave questão, ninguém lá falava português nem se sentia estimulado a aprender para se comunicar com meu interlocutor. De fato, é chocante que um imigrante tenha que aprender o idioma local, e que a população de um país inteiro não seja obrigada a aprender o idioma do imigrante!


Não me refiro, também, aos que são obrigados a jurar amor ao Brasil. Políticos, que são naturalmente hipócritas; funcionários públicos, que defendem o país porque este lhes é bastante generoso; esquerdistas que, de tempos em tempos, ressuscitam um discurso nacionalista (não seria a teoria marxista avessa à ideia de Estado?) ou “artistas” (com aspas, mesmo), para quem muito interessa a proteção da cultura nacional - proteção esta que, mais das vezes, se dá com bastante dinheiro público jorrando aos tais “artistas”. Estes todos parecem amar mais a si mesmos.


O que dizer do imigrante que, pobre, achou no Brasil uma terra de razoáveis oportunidades e relativa liberdade? O imigrante europeu que fugiu de guerra e perseguição religiosa achou nestes tristes trópicos uma terra bem acolhedora, sem dúvida. Mas não teria sido assim em qualquer outros país americano? Uma democracia sólida e economicamente desenvolvida como os Estados Unidos também não garante liberdade de culto? Foi obra do acaso o enorme fluxo migratório para os Estados Unidos em comparação com os demais países americanos? Enfim, o imigrante, que tem bons motivos para gostar do Brasil, é realmente tão patriota, ou ama o fato de que aqui não há perseguições, o que se deve mais à nossa cultura avessa às ortodoxias em geral do que às nossas liberdades constitucionais (que sempre desaparecem quando surge um líder forte)?


Há quem goste do Brasil por causa da suposta falta de seriedade. Não sendo as coisas por aqui tão sérias ou tão rígidas, pode-se levar a vida com mais leveza. Sou simpático a tal argumento; confesso que não gostaria de viver em uma sociedade calvinista do Século XVI ou em uma colônia de puritanos na América do Norte. Tenho certa preguiça de muita seriedade. De todo o modo, sofro quando a incapacidade de levar a vida minimamente a sério nos relega uma existência triste.

Stańczyk, de Jan Matejko. O bobo é sempre feliz?

Tristeza. Talvez seja esta a característica da América Latina. Gostamos de pensar em nós mesmos como um povo feliz, acolhedor e expansivo. Talvez devamos nos perguntar o quanto desta receptividade e deste calor humano não são, na verdade, um bálsamo para a tristeza serena advinda do conformismo, do desânimo de saber que uma mudança brusca é impossível. Ver um povo inteiro inebriado em um bloco carnavalesco não denota a necessidade de um alívio escapista a uma existência que, de tão rígida, leva ao desânimo? E se a mesmo a nossa sexualidade, que dizemos tão despudorada, só for desta forma porque somos naturalmente apáticos e, sob condições normais, não conseguimos desenvolver de forma plena e saudável nossos impulsos carnais? Neste caso, precisaríamos da nudez pública e do constante estímulo ao sexo (cada vez mais onipresente na cultura popular) para termos uma sexualidade aflorada. O quão horrível seria olhar a sério esta hipótese? Talvez fique claro que nem nossa propagada compulsão carnal seja uma vantagem em relação aos outros povos. Talvez não tenhamos, de fato, nada, absolutamente nada do que nos orgulhar.


O Brasil dificilmente será descrito como “triste”, mas o que dizer de um país em que a maioria anseia por deixar? Como classificar como “alegre” um país em que a população é esmagada por uma violência urbana sem paralelo? Pior: quem pode dizer ser alegre um país cujo caos urbano revela-se diuturnamente na forma de cidades tacanhas, feias, mal projetadas, insossas e inóspitas?


O urbanismo brasileiro é uma prova cabal dos nossos fracassos. As cidades não são convidativas, não se pode andar com conforto, o transporte é sempre um caos e mesmo os nossos projetos utópicos (Brasília) mostraram-se asfixiados pela distopia da realidade (as cidades-satélites, com sua incomparável feiura).

A utopia urbana brasileira deu certo?

Um dos pontos abordados por Emília Viotti da Costa é, justamente, a inadequação de nossas cidades. A colonização excessivamente costeira e uma economia voltada ou para a subsistência ou para exportação fizeram com que as cidades portuárias se desenvolvessem “para fora”, ou seja, não irradiassem o seu desenvolvimento urbano para o interior brasileiro. Um dos resultados é que, se temos cidades à beira-mar razoavelmente bonitas (se bem que deterioradas por conta da decadência urbana) como o Rio de Janeiro e algumas capitais nordestinas, o interior já nasceu feio.


Viotti não trata de forma muito específica de São Paulo, mas eu, notadamente paulistano, adiciono: a cidade já foi bonita (sim, sei que é difícil de acreditar). Alguns ecos desta beleza podem ser vistos no (decadente) centro. O gigantismo, porém, a transformou num horror arquitetônico, modelo de distopia urbana. Tudo muito triste.


Já o Rio de Janeiro e as principais cidades nordestinas tiveram a sorte de nascer à beira-mar, o que lhes garantiu uma espécie de beleza perpétua. Tal beleza, porém, torna-se melancólica quando lembramos que estas cidades também foram abandonadas à própria sorte e caíram vítima do inchaço, da falta de infra-estrutura, da obsessão com carros e da violência urbana. É com certo cinismo que vejo alguns insistirem em dar ao Rio de Janeiro o título de “cidade maravilhosa”; me pergunto se um lugar em que narcotraficantes andam pelas ruas à luz do dia com armas de guerra pode ser mesmo tão maravilhoso. Salvador e Recife, não tenho mais coragem ou vontade de visitar, infelizmente.

Recife, outrora linda e hoje deteriorada como as demais cidades brasileiras

Ainda na questão do Brasil imperial e sua transição para o regime republicano, creio que um dos clássicos de José Murilo de Carvalho, intitulado “A construção da ordem/o teatro das sombras” seja uma boa companhia para o livro de Viotti. Carvalho não trata de forma tão específica da transição, mas se preocupa em analisar o funcionamento do Império. De forma diferente de outros historiadores, consegue fazer uma análise que não seja excessivamente crítica, mas também não é ufanista.


O Império era uma sociedade tacanha, controlada por um clube de bacharéis que, primeiramente, eram oriundos de Coimbra e depois passaram a frequentar as duas faculdades de direito do Império, a de São Paulo e a de Olinda. Aliás, sobre as duas faculdades, Carvalho assegura que a de Olinda tinha o ensino mais fraco, o que tornou frequentes os pedidos de transferência de alunos preguiçosos que queriam sair de São Paulo e ir a Olinda para assegurar a aprovação. Não tendo sido aluno de nenhuma destas faculdades, me abstenho da polêmica.

Família brasileira, de Jean-Baptiste Debret.

Por que o Império caiu? Certamente, uma monarquia americana era algo estranho; o continente era dominado por Repúblicas. De todo o modo, na América Latina, nunca nos furtamos ao papel de estranhos. O sistema de governo e a língua eram diferentes, bem como a extensão territorial, conseguida graças a esforços feitos para evitar a fragmentação. A estranheza, aliás, era bem vista pelos políticos do Império, que não tinham o restante da América Latina em alta conta.


O Império se viu, de repente, sem base de sustentação. Os fazendeiros ressentiam a abolição da escravidão e a excessiva centralização, os moradores da cidade viam na Monarquia algo a ser superado em prol da modernidade, o Exército tinha orientação excessivamente positivista e não gostava do civilismo do imperador, o clero se ressentia de uma subordinação à Coroa, bem como de um predomínio do Estado em relação à Igreja (supostamente, um terceiro Império, da princesa Isabel, seria mais simpático aos interesses da Igreja, porque a princesa era sabidamente beata).


No Brasil, alguns se acham, de repente, sem base de sustentação e têm uma queda súbita. A base se esvai rapidamente, deixando entorpecido o ocupante do poder que se achava seguro. Foi assim com o Império, com a primeira República, com o regime que vigeu entre 1946-64, com Collor, com Dilma, com tantos. O poder é demasiadamente liso, a tentativa de agarrá-lo com força resulta em um escape cômico (lembremos de Collor pedindo às pessoas que colocassem faixas verdes e amarelas nas janelas, ou Dilma e a tentativa tola de emplacar a narrativa do “golpe”, que já nasceu farsesca). Em terras tropicais, não se usa muita roupa, e qualquer brisa do mar desnuda o rei. Nem é preciso que se diga que ele está nu; a queda vem antes da proclamação da nudez.


Ecce homo, de Antonio Ciseri. O reino (e o Rei) que não é deste mundo, triunfou; os que eram, fracassaram.

Os dois livros, de Viotti e Carvalho, nos remetem a um Brasil longínquo, mas estranhamente familiar. Aquelas cidades lânguidas, mal planejadas, que eram um eco distante da Europa e que hoje são o exemplo de algo que deu errado. São sujas, violentas, desconfortáveis, caras e atulhadas de carros. De certa forma, as cidades são a mostra da nossa incapacidade de assumirmos uma herança europeia somada à nossa inaptidão para construir um modernismo genuinamente nacional. É difícil não relacionar o ocaso metropolitano à nossa infelicidade política.


Há esperança? Sou, por defeito de personalidade, otimista. Não acho, porém, que qualquer mudança profunda venha sem que o país exorcize seus demônios. Pode ser que não haja pecado ao sul do equador, mas há demônios que nos assombram, do Império à República.




 
 
 

Comments


Commenting on this post isn't available anymore. Contact the site owner for more info.

Formulário de inscrição

Obrigado!

  • Facebook
bottom of page