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A insustentável leveza do ser: Kundera e a nova distopia do "kitsch" político

  • Foto do escritor: Luiz Felipe Panelli
    Luiz Felipe Panelli
  • 12 de dez. de 2019
  • 7 min de leitura

Atualizado: 20 de dez. de 2021

Milan Kundera é um escritor que me impressionou desde que fiz a primeira leitura de seu excelente romance “A vida está em outro lugar”. A capacidade que Kundera tem de desenvolver uma boa narrativa em que, ao fundo, os horrores da opressão de mostram de uma maneira trágica acaba fazendo com que suas obras literárias sejam um libelo contra o socialismo mais eficiente do que qualquer livro teórico.


Por uma feliz coincidência, terminei de ler “A insustentável leveza do ser” na mesma semana em que Kundera voltou a ser cidadão da República Tcheca, de onde fugira para escapar do domínio soviético. É curioso que seu exílio tenha se dado em Paris, local de concentração de intelectuais afeitos à esquerda. Seria interessante presenciar como Kundera reagia a um comentário de uma pessoa como Sartre, que afirmava ser plena a liberdade de expressão no regime stalinista. Há certas coisas que só são defendidas por quem está longe, em um conforto tranquilo.


Quem tiver a oportunidade de visitar Praga e se esquivar dos horrores do turismo de massa poderá sentir o eco das narrativas de Kundera ressoando no meio do ambiente urbano. Uma cidade que esbanja uma beleza única e sóbria, com um povo quieto e estóico, que soube, por meio de uma fé silenciosa, suportar o terrível destino que o Século XX lhe impôs. O exílio em Paris não apagou de Kundera a marca profunda que a identidade checa deixou na sua alma.


Alexander Sochaczewski’s "Farewell to Europe!"

Em um determinado ponto do romance, um personagem lembra a tragédia de Édipo, que, vítima do destino, desposou, sem saber, a própria mãe, e sucumbiu sob o peso das suas escolhas. A tragédia de Édipo mostra que o destino tem caprichos incontroláveis e a nós, mortais, só resta agir com prudência e torcer para não sermos esmagados por nossas escolhas. Em uma última análise, muito pouco da vida está sob nosso controle.


Os personagens de Kundera também sentem este descontrole. Seus destinos são tragicamente afetados pela conjuntura política e eles também sucumbem. Suas ações importam, mas, no grande teatro político totalitário, as escolhas individuais têm pouca relevância (salvo, é claro, na densidade moral e psicológica de cada um). De certa forma, o fantasma de Édipo está sempre assombrando os personagens, mas a figura materna é substituída pela horrenda carapaça ideológica.


Fosse só esta a estrutura do romance - a vida de alguns personagens que são irremediavelmente afetados pela conjuntura política extremada e têm que continuar seu curso, com seus dilemas morais e psicológicos, em um ambiente opressor - teríamos um bom livro. O que torna Leveza excepcional, porém, são alguns toques dados por Kundera à análise da narrativa, que se apresentam de forma quase profética.


Após desenvolver boa parte da narrativa, Kundera se põe a analisar o kitsch. O exagero sentimentalista, frequentemente expressado por meio de um entendimento superficial da natureza humana, estaria tomando o mundo. Em uma determinada cena, uma personagem, já em solo americano, vê como um senador (portanto, um político importante, eleito democraticamente e compondo a cúpula política de um país que, justamente, se opõe ao totalitarismo reinante no leste da Europa) define “felicidade” através de uma imagem clichê, de crianças correndo e brincando livres num campo.


A personagem se pergunta como o senador pode definir “felicidade” através de uma imagem. Estariam as crianças realmente felizes? E se houvesse angústia nelas? E se, entre elas, houvesse animosidade? Implicitamente, questiona-se a capacidade de um líder político de entender a subjetividade de cada um, apesar de sua irritante insistência em fazê-lo a todo o momento.


De forma pouco simpática, a personagem conclui que o político americano não era, na essência, tão diferente dos fantoches checos que exerciam o poder em nome dos interesses soviéticos. Tivesse o mesmo político nascido na República Checa e talvez - provavelmente, até - ele teria se engajado na política, defendendo as ideias impostas pelo partido e participando de comemorações públicas que nada têm de espontâneas. Tudo em nome de um conceito kitsch de felicidade.


Kundera não leva mais do que uma página para descrever a coisa toda, mas consegue, no diminuto espaço, quebrar a espinha dorsal do leitor que se diz politizado. E se minhas ideias sobre política - sobre o mundo - nada mais forem do que versão grotescas e sentimentais da realidade? Como eu teria me portado se tivesse nascido em outro lugar? Meus ideais são mesmo meus ideais?


Não importa. Tais questões dizem respeito à essência das pessoas, e esta é desconhecida até por elas próprias (perdoe o leitor pelo freudianismo barato). A subjetividade é um mar turvo de opacidade e desvendá-la daria muito trabalho e resultaria numa vitória pirrônica; o dano seria maior que o benefício. Só Deus conhece a essência das coisas.


A felicidade como imagem kitsch

Desespero, portanto. Sem Deus, somos mariposas sem sol, vagantes caóticos rumo ao nada. Kundera, porém, não para por aí. Explica que a essência do kitsch é, justamente, ser visto, ser facilmente entendido pela sua banalidade grotesca. A imagem de “felicidade” correspondente à brincadeira despreocupada das crianças é apenas uma imagem, mas ela é traduzida em “felicidade” (ela, referente, se torna o signo do significado banal de “felicidade”, cujo significante está além da nossa compreensão imediata por conta da subjetividade impenetrável) não pela brincadeira em si, mas pelas lágrimas de emoção que uma pessoa soltaria ao ver as crianças brincando.


Duas lágrimas. A primeira simboliza a beleza das crianças correndo. A segunda, porém, é a mais importante: simboliza a beleza que é emocionar-se ao ver as crianças correndo. O kitsch é o oposto da subjetividade; nele tudo existe para ser mostrado, para ser visto. Isto vale para o discurso do senador americano ou para o ato do político checo comunista. Vale para o jovem universitário que faz questão de mostrar sua pretensa superioridade moral. Vale para quem se diz tremendamente ofendido por uma palavra, um termo ou expressão que caiu no index prohibitorum midiático. Vale para quem tem que mostrar a sua indignação numa rede social, ou o apoio a um político cujas ideias são tidas como mais evoluídas. A segunda lágrima é, enfim, o embrião do histerismo atual.


É necessário pensarmos o kitsch político além do seu sentido ridículo. A política depende de algo antigo, que é um ritual de lealdade, para que todos possam ser identificados com um campo de ideias. O kitsch e seu ridículo servem ao propósito de escancarar as supostas lealdades. Em Leveza, uma persoangem lembra como os jovens checos são coagidos a participar de paradas com conteúdo político; sua participação é verificada por outros jovens que, cooptados pelas benesses do regime oficial, agem como capatazes. Esse tipinho, que exige a identificação da lealdade alheia, é extremamente presente nos dias atuais.


Abre-se espaço para pensarmos a política como liturgia, um conjunto de formas sacramentais. O zeitgeist dá a sua própria significação de sagrado, cabendo aos fiéis a execução preciosa da liturgia. Atualmente, a religião organizada não é mais sagrada (em muitos círculos, a ideia de pertencer a uma religião organizada é tida como ridícula), mas o espaço público convive sem problemas com outros objetos sagrados. Palavras são banidas, ideias são tidas como profanas e não podem ser debatidas, há rituais de expiação (os pedidos de desculpas feitos por celebridades em redes sociais por qualquer deslize contra a ética politicamente correta) e há revolta pública, bem como condenação de pessoas às fogueiras morais, quando algo do novo sagrado é violado. Kitsch, demasiadamente kitsch


Edvard Munch "Frederich Nietzsche". O pensamento de Nietzsche é muito presente em "Leveza"

Um dois personagens do livro, aliás, se põe, até que de forma bem intencionada, em uma missão humanitária internacional. Para sua surpresa, a missão tem como centro uma celebridade de Hollywood, que é alvo constante das câmeras. De novo, para a celebridade, o importante não era estar na missão humanitária, era ser vista na missão. Kundera consegue antecipar, em quase quarenta anos, o fenômeno de jovens ativistas enraivecidos, que não são nada em essência, mas tudo em forma, definidos pela causa que supostamente abraçaram e pela sua profissão pública de fé à causa, fazendo questão de ser sempre vistos, mesmo que não tenham nada a falar. No caso, pouco importa que tais jovens ativistas tenham sua atuação meticulosamente planejada pela sua equipe de marketing, o que importa é que eles sejam vistos como radicais e que pessoas sejam vistas como suas apoiadoras.


“Somente essa segunda lágrima faz o kitsch ser o kitsch.

A fraternidade entre todos os homens não poderá ter outra base senão o kitsch


Eis o couch activism bem definido.


Jan Miense Molenaer - "Allegory of Vanity". No final, nossa moral é só mera vaidade?

*****


Como afirmei no começo do texto, os romances de Kundera são profundamente marcados pela experiência totalitária, que também deixou suas marcas na alma do próprio autor. O narrador de Leveza anuncia que os regimes opressores na Europa não foram feitos apenas por pessoas inescrupulosas, mas também por pessoas “normais”, que achavam que implementariam um paraíso na Terra. Visão um pouco diferente da de Hannah Arendt, para quem o burocrata comum pode ser visto como mais propenso ao mal, devido à desumanização propiciada pelo regime em que está inserido.


Kundera apresenta um traço do pensamento conservador, que é a rejeição das utopias. Não é uma teoria política que levará o homem ao paraíso terrestre; a experiência nos mostra que a realidade é dura e que radicalismo nunca foi o caminho para nada bom.


O que ocorre, porém, quando não há nada que possa valer uma batalha, mesmo que intelectual? Quando todas as utopias desaparecem e tudo se dissolve num pastiche de falsas virtudes (o kitsch dos tempos atuais)? Kundera parece afirmar, justamente, que a leveza é insustentável. O homem precisa de uma missão, de um ideal norteador. Outrora, Deus, hoje, a falsa virtude tão bem mostrada no kitsch político. O problema da época atual, porém, não parece ser a falta de utopias, mas nossa incapacidade de lidar com a perspectiva de um mundo melhor sem cair no ativismo de sofá. O kitsch, definitivamente, tomou conta de tudo.


“O que restou dos agonizantes do Camboja?

Uma grande foto da estrela americana com uma criança amarela nos braços.

(...)

E assim por diante, e assim por diante. Antes de sermos esquecidos, seremos transformados em kitsch. O kitsch é a estação intermediária entre o ser e o esquecimento”

 
 
 

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